As duas faces do processo político de 1817
De traidores a mártires da Pátria
O ano transacto foi tempo de comemorações de centenários, entre eles o bicentenário do processo de 1817, conhecido como processo de Gomes Freire de Andrade e companheiros. Passou discretamente, evocado apenas por instituições universitárias e patrimoniais, em contraste com o seu 1º Centenário quando foi objecto de solenes comemorações oficias. Celebrado no contexto da participação portuguesa em duas frentes da 1ªGuerra Mundial, serviu de exaltação patriótica das “virtudes da raça portuguesa”, exemplo de sacrifício e dádiva da vida. É com uma linguagem de conotação religiosa que Eduardo Noronha encerra a biografia de Gomes Freire de Andrade, escrita por ocasião do centenário na Revista Militar, ao referir os condenados de 1817: “absolutos mártires pelos tormentos sofridos até aí, entram nos domínios litúrgicos da canonização”. O dia 18 de outubro tornou-se feriado nacional. Foram então colocadas as placas ainda hoje existentes na última residência de Gomes Freire de Andrade, na R. do Salitre e no Campo dos Mártires da Pátria, em Lisboa, ambos arruamentos urbanos então já assim nomeados desde há perto de quatro décadas. O movimento republicano considerava-se herdeiro dos combates pela liberdade e independência nacional das primeiras décadas de oitocentos.
O acontecimento histórico evocado ao longo de 200 anos é o processo político que visou a desarticulação do movimento liberal, essencialmente militar, centrado em Lisboa, com ramificações no Porto e em outras zonas do país. Raros foram os processos políticos que se tornaram num acontecimento histórico com uma repercussão tão relevante e prolongada e que por sua vez sofreram uma mudança de sentido tão rápida. De instrumento de consolidação do poder instalado, decorridos apenas três anos este processo vai ocupar um lugar destacado na construção da memória do liberalismo em Portugal. A forma como ocorreu esta mutação, até agora mal conhecida, é o objecto deste texto.
O processo político: “os traidores da Pátria”
Um anacrónico “auto da fé” político teve lugar a 18 de Outubro de 1817: doze homens foram executados. Enforcados, alguns em seguida decapitados, todos queimados. Haviam-lhes sido previamente retirados privilégios e honras, tendo sido igualmente desnaturalizados. Reduzidos a pó, cinzas deitadas ao mar, para que deles não perdurasse memória alguma.
“Um suplicio de tantos réos e de tanto aparato qual foi o que se viu em Lisboa a 18 de Outubro de 1817 he um acontecimento raro nos annaes da História de Portugal e por isso mesmo digno de passar a notícia da posteridade.” Indispensável, escreveu Frei Mateus Assunção Brandão. Na sua memória, encomendada pela Regência, desenvolvia longamente a ideologia contrarrevolucionária e justificava o papel moralizador da pena de morte na preservação do modelo político e social existente. O risco de revoluções populares justificava as penas escolhidas, a própria decapitação post-mortem, apenas servia para aterrar os expectadores, explicava com empenho. Estava-se diante do primeiro grande embate violento entre contrarrevolução e revolução que duraria mais de duas décadas. Mas a sentença não teria o efeito de longa duração esperado.
Após um quinquénio relativamente tranquilo, o ano de 1817 tinha–se revelado um cabo das tormentas para o recém nascido Reino Unido. A temida revolução assolava os dois lados do Atlântico. Uma revolta republicana no Recife e, mal esta fora dominada, surgia uma ameaça de monarquia constitucional em Lisboa. Um ano também agitado em Espanha, com conspirações a pontuarem o horizonte político. O sentimento de abandono pela realeza espalhara-se em Portugal. Estabelecida a paz em 1815 no congresso de Viena, não se compreendia a permanência de D. João no Rio de Janeiro nem a manutenção da dominação militar e politica britânica em Portugal. A guerra cisplatina gerava o espectro de represálias espanholas e agravava o descontentamento entre os militares e a população rural devido ao alargamento da base de recrutamento militar. Fazia-se sentir “uma murmuração geral”, referia o Intendente Geral da Polícia.
Nem o processo político de 1817, nem a proibição da maçonaria em 1818 impedem a reorganização do movimento liberal, mas agora a iniciativa e a composição alteram-se. O sinédrio, essencialmente composto por civis, nasceu no Porto em janeiro de 1818. Em Lisboa, o ambiente permaneceria tenso. Ainda em meados de 1819, ao tentarem estabelecer contactos na capital, Silva Carvalho e Pereira de Meneses encontraram um clima eivado de terror. Manuel Fernandes Tomás ia sendo preso na sua deslocação a Lisboa em julho de 1820. Era convicção generalizada que só das “províncias” poderia partir o impulso renovador. A revolução liberal vencerá no Porto em 24 de agosto de 1820 e em Lisboa três semanas mais tarde, a 15 de setembro.
A revisão do processo: os mártires da Pátria
Desencadeou-se logo em 1820 um movimento de defesa veemente dos condenados de 1817. A memória acerca dos acontecimentos alterou-se graças ao conjunto de intervenções e decisões políticas e judiciais, envolvidas num movimento da sociedade civil, em que se destacaram os sentenciados sobreviventes, com frequência esquecidos, os familiares dos condenados e uma rede solidária, porventura ligada à maçonaria. A imprensa de exílio também contribuíra para isso decisivamente. A injustiça e a violência extrema do castigo foram elementos constitutivos da memória ligada ao combate pelo liberalismo.
São inúmeras as publicações em que os réus do processo de 1817 foram tratados como heróis, merecendo particular relevo a poesia. Evocam-se alguns títulos a título de exemplo : Canção a Gomes Freire de Andrade : Heroe que da virtude segue o norte, extinguillo debalde intenta a morte, (Lisboa,1820), o longo Elogio Fúnebre em memória dos doze beneméritos da pátria que em 18 de Outubro de 1817 soffreraõ martyrio por causa da liberdade e independência nacional de Camilo José Rosário Guedes (Lisboa,1822). José Dionísio da Serra, amigo de Gomes Freire e preso com ele, liberto ao fim de alguns meses, tendo acolhido a viúva de Gomes Freire, Matilde de Melo quando ela se viu expulsa da sua residência, escreveu um longo poema a que chamou Epicédio feito e recitado em 1822 no aniversário da sempre lamentável morte do general Gomes Freire, apenas editado em Angra em 1831. António Pinto da Fonseca das Neves, um dos dois degredados de Montevideu que dali regressaram em Julho de 1821, escreveu Obras poéticas, na realidade um conjunto de epístolas dirigidas a D. João VI e outras personalidades, acompanhadas de uma memória final em que solicita a anulação da sentença. No aniversário das execuções em 1821, D. Mariana Antónia Epifania Pimentel Maldonado escreveu a Ode ao triste aniversário da trágica morte de GFA e seus companheiros (Lisboa 1821). Nesse mesmo dia, celebraram-se as Exéquias solenes dedicadas aos Mártires da Pátria, na igreja de S. Domingos, uma iniciativa cidadã porventura ligada à maçonaria. Foi uma cerimónia faustosa com grande afluxo, contando-se entre elas várias personalidades politicas e enchendo-se por completo a igreja. Nesta cerimónia foi pela primeira vez executado em Lisboa o Requiem Op. 23 dedicado a Camões, sob a direcção do autor, Domingues Bomtempo. Ali, foi lançada nesse dia uma subscrição nacional a favor das famílias, enquanto se esperava pelo processo de recurso.
A peça central na reconstrução da memória, com uma repercussão política decisiva, surgiu em 1820 pela pena de Manuel José Gomes de Abreu Vidal, advogado da Casa da Suplicação. Na Analyse da sentença proferida no juízo da inconfidência em 15 de Outubro de 1817 que oferece aos amigos da Constituição e da verdade, propõe-se uma lei de amnistia, inspirada na recente lei espanhola, e a colocação de uma placa em memória dos condenados. Se a concretização da placa demorou quase um século, a lei publicou-se muito rapidamente, embora sem a generosidade da lei espanhola. Decorrido menos de um mês após a primeira reunião das Cortes Constituintes, os deputados constituintes apressaram-se a autorizar o regresso dos degredados e dos exilados políticos desde 1807. O perdão era extensivo também aos indivíduos abrangidos por sentença não-executada, que poderiam regressar e exercer os seus direitos. Dava-se-lhes o direito de embargar as sentenças, qualquer que fosse o tempo decorrido, para demonstrar que o perdão não recaia sobre um crime. Um artigo da lei foi dedicado às viúvas, ascendentes e descendentes transversais até o quarto grau daqueles que sofreram a pena de morte pelos mesmos motivos, que podiam requerer a revisão das sentenças, para “reclamarem a honra , boa fama e memória dos maridos ou parentes.” Ficava porém garantido o direito de terceiros aos bens confiscados aos perseguidos ou executados que tivessem sido adquiridos de forma onerosa. À época a comenda de Gomes Freire de Andrade encontrava-se na posse do filho de Gomes Ribeiro, o juiz da inconfidência, e a casa do arquiteto Francisco de Sousa, ex-degredado, era agora o palácio do conde da Póvoa, futuro palácio Palmela, hoje sede da Procuradoria da República.
Um aparente esquecimento foi colmatado um mês mais tarde, alargando-se a amnistia a pessoas presas ou com residência fixa por motivos políticos, restituindo-lhes a liberdade e os seus direitos, mas não o exercício dos seus postos ou cargos. Estava-se distante da generosa lei espanhola, que considerava os mortos como “beneméritos da Pátria em grau heroico” e concedia desde logo a retribuição às famílias dos soldos devidos aos mortos. Apesar disso, esta lei foi bem acolhida. José Liberato de Carvalho, ele próprio preso diversas vezes e exilado desde 1813 em Londres, classifica a lei de amnistia como “um grande acto de soberania, verdadeiramente nacional”. Simbolizava a extinção “do poder absoluto”: ao desaprovar “solenemente os actos arbitrários e bárbaros do antigo poder absoluto, deu a conhecer à nação que nunca mais tornariam a ser renovados”. Enganou-se, ainda aconteceria a violência miguelista e do Estado Novo.
Aprovada a lei da amnistia, a revisão ou “revista” do processo foi solicitada decorrido pouco tempo pelas viúvas, filhos e parentes próximos das vitimas de 1817 e igualmente pelos sobreviventes. Finalmente, decorrido cerca de um ano, o processo tem um segundo e definitivo desenlace judicial com a anulação das sentenças em 20 de maio de 1822. A revogação das sentenças anteriores foi acompanhada da “restituição da dignidade, prerrogativas, honras e bens aos réus sobreviventes e aos familiares dos mortos e a absolvição da sua memória. Ordenou-se que fossem restituídos direitos e bens, relaxando-se sequestros e embargos. A decisão deste tribunal de recurso foi além do estipulado pela lei do perdão, no que se refere à recuperação dos bens, mesmo no caso de venda, uma vez que os sequestros foram anulados. Mas uma vez mais, não se seguiu porém o exemplo da lei espanhola.
O ambiente de simpatia gerado em torno deste processo e da situação das famílias das vitimas de 1817 inspirou um gesto raro de solidariedade ao escrivão do Crime da Corte e Casa, a quem pertencia o direito de impressão da sentença. Desistiu dos emolumentos que lhe eram devidos e do produto da sua venda (deduzidas as despesas de impressão) a favor das viúvas e dos órfãos das vitimas do Campo Santana. Liberato de Carvalho comentaria no seu jornal: “Se a par de monstros não aparecessem tais homens, insuportável seria com efeito o estado social.”
Se a expressão “ Mártires da Pátria” não constava em nenhum texto oficial, pode dizer-se que ficou consagrada na opinião pública nestes anos. Seria retomada desde logo na imprensa, entre outros, no artigo sobre a revisão da sentença, “O Martírio e os Mártires do Campo de Santa Anna, judicialmente vingados: um dos grandes benefícios da nossa política da Regeneração”, escrito por Liberato de Carvalho no seu jornal O Campeão Português.
Ao fim de dois anos, estava aberto o caminho para os processos individuais de reparação de danos. Os processos vão-se arrastar e refletir as vicissitudes inerentes às alterações políticas dos anos seguintes. Os sobreviventes procuraram recuperar os empregos e o tempo perdido. O arquiteto Francisco Sousa solicitou a restituição de funções como arquiteto do Colégio da Igreja Patriarcal de Lisboa. Tenta também recuperar o seu palácio, hoje sede da Procuradoria Geral da República, combate que o seu filho ainda prosseguia já virado o meio do século. Era o caso de expropriação mais escandaloso da época. Combate vão. Confrontou-se sucessivamente com o poder e a influencia do conde da Póvoa e do duque de Palmela, as maiores fortunas da época. Em meados do século, já em fim de vida, ainda renovou o pedido que vinha apresentando desde 1835 para conseguir, pelo menos, deixar a seus filhos e netos o seu vencimento, então reduzido a menos de um quarto. Diversas vicissitudes afectaram a reintegração dos militares sobreviventes, o capitão Caetano Borges Amora, preterido repetidamente nas promoções e António Pinto da Fonseca.
As pensões foram sendo concedidas às viúvas e aos descendentes, sendo Matilde de Melo, viúva de Gomes Freire, indemnizada pouco mais de um mês após a sentença. O regime miguelista e a guerra civil viriam a perturbar a sequência do pagamento das pensões.
As duas sentenças de 1817 e de 1822 simbolizam as duas faces do novo ciclo político de confronto entre contrarrevolução e revolução que vai prolongar-se por mais de duas décadas. A primeira sentença traduziu o desenvolvimento de forma violenta do gérmen da contrarrevolução incluso no seio do despotismo esclarecido. A segunda sentença de recurso anulou a primeira, transformando-se no seu reverso, um julgamento das instituições envolvidas, Juízo da Inconfidência, Regência, Beresford e seus associados. Prende-se com a emergência de um movimento de cidadania em defesa dos homens condenados em 1817, logo após a revolução de 1820, provando-se que não constituíam um grupo isolado, antes representavam a vontade oculta de mudança política, que se afirmara na própria revolução liberal. Foram três breves anos, mas moldaram a história do liberalismo, cujo bicentenário se aproxima a passos largos. Espera-se que seja evocado com a relevância merecida.
Nota: Este texto é uma síntese da comunicação apresentada no colóquio Gomes Freire de Andrade e as vésperas da Revolução a 18 de Outubro de 2017, em publicação pela BNP/ CML