Cruzeiro Seixas: cem anos à beira do abismo
«L’art de Cruzeiro Seixas est une blessure qui danse», Édouard Jaguer
No passado dia 3 de Dezembro, Artur Manuel Rodrigues do Cruzeiro Seixas iria fazer cem anos. Os amigos, e todos os que graças à sua obra e à sua palavra e à sua companhia foram ficando mais ricos e mais lúcidos e mais crianças sempre abertas a novas descobertas, preparavam-lhe festas e (con)celebrações quando ele decidiu embarcar no navio de espelhos para se reencontrar com o seu Amigo – assim, em maiúscula, como sempre foi, mesmo depois do seu distanciamento – Mário Cesariny, mais um São Brandão à procura da sua baleia e da sua ilha. Como uma ilha definiu-se alguma vez Artur Manuel, vivendo voluntariamente à beira do abismo – Passo dias e noites à beira do abismo– num universo de solidão e ausência por ele transformados em jogos de presenças e encruzilhada de caminhos de libertação: Julgo que é na ausência que se constrói o infinito: todo o infinito, diria eu, é feito de ausência. […] A solidão que é a minha, a construída, a encontrada, a imposta, tem sido a minha estreita prisão, mas também, hoje, já a minha única possibilidade de libertação […] A solidão é uma das plenitudes possíveis.
São de 1940 as suas primeiras obras dadas a conhecer: As comemorações espetaculosas e ofensivas dado o contexto internacional, dos sete séculos de história deste país, em 1940, tornaram esse ano decisivo. Desenhei e pintei furiosamente, segundo a ética neo-realista– e dois anos depois começou a realizar colagens e objetos –Em 1946 inventei o “Objecto Surrealista”, pois era nenhum o meu conhecimento da sua existência. Fiz alguns, com meias de seda vestindo esqueletos de barbas de espartilho, de que só restam algumas más fotografias. Nessa altura, na Escola António Arroio e no Café Hermínius, à Almirante Reis, foi travando conhecimento com aqueles que no fim dessa década haviam de protagonizar a intervenção surrealista em Portugal. O Hermínius pode ser considerado aqui como paradigma do café como espaço fundamental de encontro, diálogo, convívio, amizade, criatividade e resistência dos artistas da Modernidade dentro e fora de Portugal, e assim foi lembrado e descrito por Eurico Gonçalves: era uma espécie de Café Voltaire cá-do-sítio, onde apareciam estranhos personagens, nomeadamente a velha das alpargatas e ventoinha de elástico que dava gargalhadas anarquizantes; o homem só, que era só cara, lápis, borracha e folha única de papel que, depois de completamente preenchida, era apagada e de novo escrita; os “ursinhos”, que eram crianças maltrapilhas tipo “Las Hurdes” que, impedidas de entrar no estabelecimento, vinham volta e meia, esborrachar o nariz e espalmar as mãos contra a vitrina; o doutor dentista nazi que acreditava na entrada triunfal de Hitler no Hermínius, etc., etc. Voltando às confissões do autor: Em 1944, com António Domingues, Pedro Oom e Cesariny, projectávamos uma exposição “Dada” – que realmente não poderia passar de projecto, por óbvias razões. Penso que, em projecto, ficou talvez o melhor de nós. Neo-realismo, dadaísmo: duas poéticas e duas atitudes de difícil aproximação que marcaram esses primeiros anos quarenta do século passado na experiência dos surrealistas portugueses, pelo que não estranha que alguns críticos e historiadores usem um ou outro termo para se referirem às noites do Hermínius. Mas sigamos com as palavras de Cruzeiro Seixas: Como complemento às noites do Café Hermínius havia as caminhadas a pé, atravessando Lisboa de extremo a extremo. De dia visitávamos exposições e livrarias, mas à noite mantínhamos agónicos silêncios, geralmente o Fernando José Francisco, o Cesariny e eu. As discussões, quando as havia, desencadeavam uma grande tensão. Eu não aparecia todos os dias por falta de apetência, porque sempre fui muito amado pela solidão, e porque não tinha dinheiro nem para cinemas, nem para “eléctricos”, nem sequer para o café. Assim perdia o fio que ligava as conversas e discussões, não podia compreender certo humor ácido, referências a certos personagens que me eram desconhecidos, referências a livros, e exposições ou filmes que não tinha lido ou visto. […] Voltava para a minha solidão grávido do que tinha compreendido e do que não tinha compreendido, daí me ter ficado a ideia de que é afinal muito mais importante aquilo que não se compreende completamente que aquilo que se compreende, e dessa metafísica tirava eu uma certa possível razão.
A seguir a esse momento e a essa experiência iniciática, mais dois momentos e duas experiências (intimamente ligadas) que acabariam por configurar e perfilhar e marcar definitivamente a viagem de conhecimento de Cruzeiro Seixas: o Surrealismo e a experiência africana. Passei 12 anos em África, não para fazer fortuna, mas para conhecimento e reconhecimento daquela civilização. Evidentemente, com esta fuga para África (não para Paris) coroei o meu descaminho, referido por amigos como Natália Correia, Ernesto Sampaio, Rui Mário Gonçalves, Eurico Gonçalves, Bernardo Pinto de Almeida, André Coyné, Maria João Fernandes, etc. etc. Em Angola, para além dos seus trabalhos para empresas de construção, seguros ou publicidade, acabou por conseguir um emprego no Museu de Angola – que era um sítio onde era expressamente proibido fazer qualquer coisa– viajou pelo interior do território até que aquela paisagem […] passou a ser a minha própria carne e o meu próprio espírito. Assim foi reunindo uma importante coleção etnográfica, enquanto começava também a escrever poesia -“nasceram-me alguns poemas”, como ele dizia; aliás, muitos deles assinalavam no final como lugar da escrita “Áfricas”- e organizando exposições: a sua primeira exposição individual, em 1953, com folha volante presidida por um poema de Aimé Césaire, e a exposição de objetos e colagens de 1957, com ajuda de Alfredo e de Manuela Margarido. Cesariny, relacionando também íntima e profundamente “as áfricas” e o “surrealismo” a propósito da primeira exposição de Cruzeiro Seixas, dizia: A África é o último continente surrealista. Tudo o que acontece, combate ou ultrapassa a interpretação estreitamente racionalista do homem e dos seus modos tem a ver com um sentido surrealista da vida. […] A África conhece um mito que nós ignoramos. Julgamo-la adormecida no passado e está talvez perfazendo o futuro.
Se África foi a sua nau, o Surrealismo foi o mar para as viagens da sua Viagem até hoje. Neste momento de degradação da linguagem como expressão maior de um processo de degradação geral da chamada realidade, é costume infelizmente exemplar disso usar os termos surrealista ou surrealismo para se referir a algo ou alguém estranho, bizarro ou mesmo decididamente estúpido: por isso, impõe-se lembrar aqui e agora mais uma vez que o Surrealismo foi fundamentalmente uma questão moral e ética, subseguintemente política, para além de uma estética (a romântica ou expressiva), uma poética e um conjunto de práticas artísticas e literárias que tinham como objetivo aquilo a que Cesariny chamava a “reabilitação” da realidade quotidiana e a sua transformação, com a imaginação como arma e ferramenta principal, numa realidade poética (e não menos “real”) governada pelo Amor, a Liberdade e a Poesia. E dizer reabilitação é tanto como dizer revolução: revolução individual interior (consciência moral) e exterior (atuação ética); revolução coletiva (quando multiplicadas e conjugadas as individuais): revolução social. Essa a revolução sonhada, desejada, procurada pelos surrealistas. Revolução surrealista, revolução total, sem fronteiras nem limites nem estações-fim-de-trajeto. Ou antes, simplesmente, REVOLUÇÃO: sem adjectivos.
Cruzeiro Seixas esteve sempre na primeira linha do combate da conquista do Absoluto (que afinal é o termo que poderia resumir essa realidade triangular) imaginado e sonhado, embora dele só conheçamos aqueles dourados ”indícios”, como dizia Mário de Sá-Carneiro, ou “reminiscências”, como Platão os chamou. Artur Manuel, o artista Cruzeiro Seixas, passou a vida a traduzir de mil maneiras diferentes e por múltiplas linguagens e técnicas em um permanente diálogo que chegava até à fusão e à confusão aquele sonho romântico: desenhos, pinturas, colagens, objetos, esculturas, poemas, contos, cartas pessoais preciosamente ilustradas, os mais de quarenta cadernos (de que António Prates publicou duas antologias apresentadas como “Diário não Diário”) que representam uma reinvenção do género «diário pessoal» ou um guia da «peregrinação» do homem, da personagem e do artista Cruzeiro Seixas, a poesia verbal (quatro volumes organizados por Isabel Meyrelles, o último ainda não publicado), os seus «desaforismos», um guião cinematográfico, os cenários para a Companhia Nacional de Bailado e para a Companhia de Bailado da Fundação Gulbenkian, e as obras colectivas como os cadavres-exquis ou os manifestos e textos de intervenção, e os seus próprios textos de crítica e combate – artigos, textos para catálogos, entrevistas -, sem esquecer no seu trabalho e com os mesmos horizontes a direção de galerias de arte que estabeleceram uma ponte preferencial com grupos internacionais (como o grupo PHASES de Paris), e, enfim, a sua paixão de colecionador de obras dos grandes nomes do Surrealismo português e internacional (muitos deles amigos pessoais), de arte africana e de obras de artistas que poderíamos situar no território da arte «naïf».
Da parte da sua obra que parcial e injustamente vem sendo identificada como a sua mais genuína forma de expressão artística, diz Eurico Gonçalves: Os seus desenhos à pena são rumores de catástrofes, naufrágios, corpos transfigurados, visões, sombras projectadas nas areias do deserto, paisagens de desolação, ternura e crueldade, o humor negro de situações externas, algo boschianas. São também possíveis ilustrações dos Cantos de Maldoror, Conde de Lautréamont, retrato do inominado, de um continente desconhecido.
De injustiça falei, porque injusto é ignorar ou marginalizar o resto da sua obra, tanto a plástica como a literária, e ao mesmo tempo os sentidos cruzados e confundidos de uma e da outra no sentido únco e definitivo de um horizonte inexplorado e aberto à necessidade e às urgências de conhecimento -não de saber ou de saberes- que afinal lhe permitiriam dizer, dizer-nos: Ao que encontrei/tanto e tanto acrescentei. E também: O meu voto é de que esta experiência possa ser útil a alguém. Como já foi para mim, para muitos de nós, ajudados graças a ele e aos escuros trabalhadores-toupeiras da estirpe de Rimbaud a viver e conviver numa realidade que continua a preferir as trevas por medo ao desconhecido que a luz revela e ficar no cais em vez de navegar e repetir depois de cada viagem (ou de cada estação ou descanso ou intermitência da única Viagem) que quando o viandante chegar enfim exausto à sua cidade e à porta da sua casa, terá a alegria de se aperceber de que, para lá da porta, a estrada se prolonga até ao infinito…

Perfecto E. Cuadrado
(1949)
Professor Emérito da U.I.B., Colaborador de investigação da Cátedra "Mário Cesariny" e Coordenador do Centro Português do Surrealismo (Fundação Cupertino de Miranda, V. N. Famalicão)