Nota de Leitura – “A Guerra Colonial sem filtro”
Nos últimos treze anos da ditadura a vida do país foi marcada pela Guerra Colonial: 600 mil jovens mobilizados, entre 1961 e 1974, para a guerra em Angola (300 mil), Moçambique e Guiné-Bissau, desertores, refractários, treze mil mortos, dezenas de milhares de feridos. A memória pública desse tempo de pedras tem vindo a ser reconstituída, penosamente, sobretudo a partir das intervenções dos seus protagonistas, numa catarse que tem contado com profissionais e estudiosos que analisam, sob as mais diversas perspectivas, a complexidade do tema.
O livro Sinais de Vida (Cartas da Guerra 1961-1974), de Joana Pontes (Lisboa, Tinta-da-China, MMXIX) é um desses casos. Partindo da correspondência postal trocada entre os militares seus protagonistas e os seus familiares e amigos, resulta num trabalho académico da autora sobre a guerra colonial, através de uma fracção dessa correspondência que abrangeu mais de 4 000 cartas e aerogramas depositados no Arquivo Histórico Militar, no âmbito do projeto Recolha de Espólios e Acervos Documentais de ex-combatentes e seus correspondentes, da respetiva Liga de Amigos.
Trata-se de uma obra sobre a guerra colonial – os seus protagonistas e a sua rectaguarda, familiares, namoradas e amigos, implacável retrato sociológico, a preto e branco, de um país europeu de poucos recursos envolvido em três frentes de guerra, no continente africano, distanciadas por milhares de quilómetros. Num excelente prefácio, o Coronel Aniceto Afonso refere a contradição entre o drama que foi essa guerra, durante tantos anos, e a ausência de posições críticas, no espaço público interno: “O silêncio imposto pelo regime faz a guerra parecer distante, faz a guerra parecer ausente, de certa forma torna a guerra inexistente”.
No esforço de guerra a que o regime se viu obrigado incluiu-se, urgente e prioritário, o problema da correspondência postal, resolvido com a criação de um eficiente Serviço Postal Militar (SPM), usando a via aérea (TAP e FAP), e, enquanto militar, à margem da intervenção da polícia política (PIDE/DGS). Com o SPM veio o aerograma militar (o famoso bate-estradas), com o peso de três gramas, amarelo torrado ou azul, isento de porte e sobretaxa aérea, tão leve e tão livre que, como tal, iria ser usado aos milhões num país sujeito a uma apertada censura postal. A gratuitidade do objecto e a ausência de censura ou vigilância de terceiros estarão na base da escrita desinibida (quantas vezes numa deliciosa ortografia fonética de letras gordas…) dos seus remetentes, todos os que passaram por uma guerra que sempre lembram pelo bate-estradas e pelo quico.
A importância da correspondência postal para o acerto do moral das tropas pode inferir-se do seu volume, que chegou a atingir picos diários de dez toneladas e se saldou, no final, em 21 mil toneladas de papel. A singularidade, e o mérito, destes Sinais de Vida, estão na revelação de uma realidade captada a nu, sem o filtro de qualquer censura, com a autenticidade que daí resulta: a verdade do bate-estradas. São Cartas da Guerra a conservar entre os mais expressivos e preciosos testemunhos sobre um drama histórico que vai continuar a mexer connosco até ao último dos maçaricos.
Levy Baptista
(1935)
Advogado. Deputado à Assembleia Constituinte pelo MDP/CDE (Movimento Democrático Português/Comissão Democrática Eleitoral). Jurista. Executivo da CNS Presos Políticos. Director da revista Seara Nova (2012-2019)