RÉGIO, A PRESENÇA E O NEO-REALISMO

O ensaísmo invulgarmente perceptivo de José Régio, que, além de poeta, ficcionista e dramaturgo, foi também um notável estudioso e promotor dos valores literários portugueses, sugeriu-me, em tempos, esta merecida qualificação: “uma vocação para compreender”. O autor de Biografia tinha, realmente, uma tendência mais para compreender do que para julgar, embora não se abstivesse de julgar. Como dizia num seu verso célebre, gostava de “ver tudo mais por dentro do que vira”. Dado mais a perguntar do que a responder e preferindo ver hipóteses provisórias onde outros viam certezas definitivas, Régio estava sempre a retomar obras, escritores, ideias, revisitando-os com o desejo de melhor e mais completamente os entender e de ir errando cada vez menos. Uma atitude, já o disse, de autêntico espírito científico. Nisto, curiosamente, sem por certo ter lido Popper, que, nessa altura, ninguém em Portugal conhecia – The Logic of Scientific Discovery teve uma edição alemã em 1935 e só conheceu uma versão inglesa em 1959 – Régio seguia, de muito perto, a injunção de Popper de “falsificar” (mostrar que é falsa) uma hipótese para se passar à hipótese seguinte (também, por sua vez, “falsificável” e assim sucessivamente). Como analista e intérprete, Régio era, em suma, “cauteloso” ou “prudente”, como lhe chamou, com intenção pejorativa, José Rodrigues Miguéis, mal sabendo que lhe estava a fazer um elogio de monta. O verdadeiro espírito científico é um misto de ousadia e cautela: ousadia, ao congeminar uma hipótese nova e ousada, cautela, ao estar permanentemente consciente de que nenhuma hipótese é definitiva. O espírito não científico agarra-se com unhas e dentes à sua hipótese, conquistada possivelmente com muito esforço, considerando inimigos todos os que queiram escrutiná-la. O espírito científico diz que a sua hipótese só é válida até aparecer algo que ela não consiga explicar, assim se invalidando (falsificando). O espírito profundamente científico será aquele que espera impacientemente pela falsificação da sua hipótese, para se passar o mais rapidamente possível à hipótese seguinte. Foi com esta “dúvida metódica” que Régio tão bem construiu os seus ensaios e críticas na revista presença e foi ela que tanto o distinguiu do espírito combativamente assertivo – mas menos “científico” – dos jovens e aguerridos neo-realistas. Estes, até por razões tácticas, que se podem compreender, eram categoricamente afirmativos e cheios de certezas quanto ao futuro e quanto ao modo de lá chegar. Estas certezas impregnavam, de modo algo indiscreto, o tecido das obras dos neo-realistas, minando até certo ponto a sua qualidade artística, como o próprio Engels faria notar, sem qualquer ambiguidade, à aguerrida escritora Minna Kautsky. Já lá vamos.

 

Os “amanhãs que cantam” eram sem dúvida mobilizadores e susceptíveis de terem boa acolhida por parte de uma juventude subjugada pelo cinzentismo, pelintrice contente e apertada vigilância de um Estado Novo seguidor tímido e provinciano dos fascismos que campeavam pela Europa desse tempo. Os da presença não tinham qualquer simpatia pelo novo regime português: que eu saiba, nenhum dos mentores da revista jamais aceitou favores de António Ferro. E Régio, não sendo um animal político, nunca escondeu a sua aversão ao Estado Novo, que criticou veementemente, em escritos publicados no jornal de Portalegre – A Rabeca –  e, sobretudo, no livro de poesia – A Chaga do Lado – , vindo à luz em 1954 e que é uma das mais acutilantes colecções de sátiras que regista a nossa história literária. Nele agride, com uma eloquência servida por uma acerada oficina poética, a igreja católica daquele tempo e o grande capital, ambos a viver em indiscreta simbiose com um Estado Novo que se dizia cristão. Poemas como “Reportagem” e “Non est hic” devem ter deixado o capital, o Estado e a igreja católica a jurar vingança. Desta última, que até aí ensaiara namorar o grande poeta, a reacção não se fez esperar: a prudente e equilibrada revista Brotéria, pela não despicienda pena do egrégio Padre Manuel Antunes, até aí, incondicional admirador de Régio, desancou impiedosamente o livro, declarando o talento do poeta em vertiginoso e definitivo declínio. Cá se fazem, cá se pagam.

Como professor do Liceu Mouzinho da Silveira, nunca escondeu de que lado estava. Quando um seu colega foi politicamente perseguido e suspenso das suas funções por um período longo, Régio foi o único colega que frontalmente assumiu a sua defesa e com ele totalmente se solidarizou.

Também era de todos conhecido, em Portalegre, o episódio de o professor José Maria dos Reis Pereira ter dito, a um aluno que apareceu na aula fardado da Mocidade Portuguesa, que fosse para casa vestir-se como devia.

Não era, pois, sobretudo, o apolitismo ou qualquer alegada falta de coragem dos seus mentores que separava a presença dos seus camaradas do neo-realismo. No fim de contas, a revista coimbrã, por mais de uma vez solicitou empenhadamente colaboração literária dos argonautas do neo-realismo, tendo-se sempre mostrado aberta a todas as tendências políticas ou religiosas. Mas havia, como disse, uma diferença fundamental: de um lado, a dúvida, como grande motor do conhecimento, do outro, a assertividade, considerada necessária à firme implantação de uma ideologia salvífica. A presença abria as portas a toda a literatura, desde que fosse “viva” e não “livresca”. Os argonautas do neo-realismo achavam que era preciso uma norma que orientasse, com firmeza, a produção literária daquela época perturbada da humanidade, menosprezando como, no mínimo, inoportuna ou inútil a sondagem de labirintos psicológicos que os presencistas ensaiavam com algum atrevimento. Álvaro Cunhal, num texto célebre, reconhecia em Régio um notável poeta mas lamentava que ele pusesse o seu enorme talento ao serviço de bizantinas sondagens “umbilicais”, em vez de o pôr ao serviço das necessidades mais prementes do povo. A esquerda a que pertencia Cunhal e os neo-realistas era confessadamente normativa e, segundo as directivas do russo Jdanov, indicava rigidamente aos escritores os caminhos que deveriam percorrer.

Régio e os da presença não estavam de acordo: nada tinham contra a literatura que faziam os neo-realistas – e até os convidavam a colaborar na revista – mas reservavam-se o direito de fazerem a literatura que melhor entendessem. Porém, note-se mais uma vez, sem excluir outras escolhas e outras preferências. Num texto publicado no nº 28 da revista (Agosto – Outubro de 1930), Régio recorda e reforça a abertura da revista: “A Presença quer manter-se alheia a qualquer credo político, religioso ou moral, aceitando nas suas colunas colaboradores de qualquer credo político, religioso e moral. Todas as insinuações, sugestões, reflexões, afirmações ou opiniões de carácter político, religioso ou moral, acidentais ou essenciais em qualquer texto publicado na presença, são da pura responsabilidade de quem os assina.” Num outro texto, publicado no nº 1 da série II (Novembro de 1932), Régio, fazendo um apelo sincero ao regresso dos dissidentes da revista (Torga e Branquinho da Fonseca), reitera: “À revista presença interessam as criações de arte, as pesquisas ou conclusões da crítica, – e, dum modo geral, as manifestações do espírito humano dominando tanto quanto possível as limitações do espaço e do tempo. As questões políticas e sociais não lhe interessam, pois, senão na medida em que se correlacionam com essas e assim contribuam a iluminá-las, sem que a presença arvore uma bandeira de qualquer doutrina social ou política. Por isso mesmo caberão na presença colaboradores vindos dos sectores mais diversos e poderá a presença merecer simpatia dos mais diversos leitores.”

Como fica documentado, a presença – com Régio à frente – de modo nenhum se opunha ou fazia guerra à literatura que os neo-realistas empreendiam fazer e estavam a fazer: apenas reivindicavam a liberdade de fazerem a que eles, presencistas, entendessem.

O outro ponto de fricção foi o do esteticismo agudo e obsessivo que os neo-realistas acusavam de ser característica da presença, esteticismo que seria inadequado aos tempos que então se viviam e, segundo eles, exigiam uma arte menos preocupada com a “forma” e mais com o “conteúdo”. Ainda aqui, o tiro falhava completamente o alvo. Embora naturalmente defensores de que os artistas não deviam esquecer-se de que estavam a fazer arte, da qual eram responsáveis oficiantes, de modo nenhum isso se constituía em obsessão, para os presencistas. Tanto Régio, como Gaspar Simões, como Casais Monteiro, várias vezes mostraram particular simpatia e até admiração por aqueles autores – nacionais e estrangeiros – que já uma vez classifiquei como “os grandes desarrumados”: Raul Brandão e Dostoiewsky, para citar só dois. Régio, em carta particular a Gaspar Simões, chegava a dizer que admirava talvez mais o romance O Idiota, de Dostoiewsky, por este ser tão mal construído e informe. E Gaspar Simões via em Os Maias, de Eça de Queirós, como vantagem, uma certa deriva, em relação à clássica narrativa bem construída e carpinteirada do tradicional romance francês: Aquela informe massa um pouco imóvel ou pouco móvel, fugindo à matriz perfeita da narrativa gaulesa seria, por isso mesmo, mais rica, interessante e atraente. Cheque mate, pois, ao esteticismo obsessivo dos presencistas. Casais Monteiro fez afirmações muito semelhantes a estas.

Mas, voltando ao normativismo dos neo-realistas e à reivindicação de liberdade criativa dos presencistas, não tem sido muito notado que, se algum dos movimentos estava de acordo com o que, neste terreno, recomendavam os pioneiros do marxismo – Marx e Engels – esse movimento era o dos presencistas e não o dos neo-realistas. Estes últimos seguiam, não as recomendações sensatas de Marx, sincero conhecedor e admirador das artes, mas sim as normas rígidas congeminadas por Jdanov, as quais, de marxismo, não tinham nem o cheiro. Marx, homem culto e genuíno amante das artes, nunca tentou “dirigi-las”, pelo contrário, sempre achou que os artistas deviam ser deixados em liberdade, fazendo o que muito bem entendessem. Nunca avaliou o mérito dos escritores ou outros artistas, pelas suas inclinações políticas. Uma das suas filhas disse mesmo que o pai nunca deixou de admirar o poeta Heine, apesar das limitações políticas deste.

Karl Marx e Friedrich Engels

Os discípulos mal aconselhados de Jdanov (funcionário das artes e não conhecedor e amante das artes), que não eram, de modo nenhum, discípulos fiéis de Marx, acharam que havia temas bons e maus, temas oportunos e não oportunos, temas convenientes e inconvenientes, temas maiores e temas menores. Num texto publicado no nº 949 da Seara Nova, em 20 de Outubro de 1945, Mário Dionísio fez uma sensacional proclamação: “Se alguém me perguntar qual o mais belo, mais poético, mais humano tema para um poeta neste momento, eu lhe responderia sem hesitar: eleições livres, eleições livres, eleições livres.” Havia aqui um equívoco um tanto demagógico (em que pese à alta estima que sempre tive pelo autor de A Paleta e o Mundo): por muito importantes que fossem – e eram! – as eleições livres, a verdade é que elas, mesmo sendo um valor insigne, não eram, à partida, um tema nem particularmente “belo” nem particularmente “poético”, a não ser que um poeta de génio o transformasse à custa de muita oficina poética e de excepcional sensibilidade, num tema poético e belamente trabalhado. Pergunto: se um poeta com o génio de Camões tivesse produzido, em 1945, sobre o tema da perda de um ser amado, um poema tão conseguido e tão belo como o “Alma minha”, de Camões, que teria Mário Dionísio dito e feito deste poema? Que não era “oportuno”? Que era irrelevante para o momento que passava? Então a perda de um ser amado não é um grande trauma de todos os tempos? A ideia de que um grande poeta ou, simplesmente, um escritor deve ficar “agarrado” aos grandes dramas e crises sociais e políticas do seu tempo e pôr de lado bizantinas preocupações é desmentido pelos factos da história literária. Shakespeare retirou-se para o campo, no período da peste negra, e aproveitou o retiro, não para filosofar sobre o pecado original e o destino dos pecadores deste mundo, mas, simplesmente, para polir e aperfeiçoar as suas peças. E Valéry voltou ostensivamente as costas à grande carnificina de 1914 – 1918, para escrever o seu poema mais célebre: Le Cimetière Marin. Marx, repito, não teria objectado. Se o talento e o estado de espírito do poeta para aí o levava, era deixar que o levasse.

Quando o egrégio Eduardo Lourenço postulou que a presença era menor que o Orpheu, porque a primeira fazia psicologia e o segundo produzia abalos ontológicos, apeteceu perguntar: se é o “tamanho” do tema (e, já agora, do poema…) que serve de padrão de avaliação, será que se pode dizer que a “Ode Marítima”, de Campos, é “maior” e mais importante do que o soneto de Camões: “Aquela triste e leda madrugada”? Aqui fica a pergunta, embaraçosa mas pertinente.

Já por várias vezes citei uma passagem significativa do ensaio “Marxism and Literature”, do grande crítico e ensaísta americano, Edmund Wilson (marxista), que diz o seguinte: “[Marx e Engels] tinham crescido antes de a grandeza da literatura alemã ter terminado, e tinham ambos decidido, na sua juventude, que seriam poetas, reagiam às obras de imaginação, em primeiro lugar, em termos do mérito artístico delas” (Tal como Régio sempre recomendou). Isto significa que não era, para esses, a orientação política ou outra que lhes interessava, sobretudo, mas sim o mérito da execução artística. Talvez, por isso mesmo, Lenine não hesitou em mostrar sempre uma enorme admiração por Tolstoi, mesmo sendo conde e místico, nem em afirmar, com grande convicção, que considerava o burguês Pushkine maior poeta que o revolucionário Maiakovsky (aliás, também, notável bardo). Marx, Engels e Lenine eram homens muito cultos, que conheciam e amavam a arte e não se deixavam cair em juízos redutores e ideologicamente primários. Com as posições deles, Régio sentir-se-ia muito mais à vontade do que os neo-realistas, motivados por Jdanov, que pouco ou nenhum conhecimento tinha da grande arte e, por isso, nenhum amor nem respeito podia ter por ela.

(Antes de passar às minhas considerações finais, queria aqui transcrever uma apreciação de Tolstoi, feita por Lenine, que deveria ter deixado cor de cera os Jdanovs e seus discípulos: “Que colosso, hem? Que cérebro maravilhosamente desenvolvido! Ora aqui tem um artista à altura, meu caro senhor. E sabe o que é mais extraordinário? É que não se conseguiu encontrar um único ‘mujik’ [campesino] genuíno na literatura, até este conde [Tolstoi] aparecer em cena.”)

Outro ponto em que os presencistas aparecem muito mais em sintonia com os pioneiros do marxismo do que os neo-realistas  é o que tem que ver com o modo mais ou menos indiscreto como as opiniões políticas, religiosas ou outras se inserem na narrativa. A propósito da chamada Tendenz-Literatur (Literatura de Tendência), Engels escrevia à romancista Minna Kautsky o seguinte, a propósito de um romance desta: “Você, evidentemente, sentiu a necessidade de tomar politicamente partido, neste livro, de proclamar ao mundo as suas opiniões. Mas eu acredito que essa tendência deveria emergir naturalmente da própria situação e da própria acção, sem ser explicitamente formulada e que o poeta não tem obrigação de fornecer ao leitor a solução histórica pré-fabricada para o futuro do conflito que descreve.”

Quanto a esta parte final, já vimos que Régio também era mais inclinado a perguntar do que a responder. Gide, no célebre prefácio a L’Immoraliste, já notava que não competia ao escritor encontrar soluções para os conflitos, porque já não era pouco pintá-los bem.

Mas quanto à indiscrição, artisticamente pouco recomendável, da apresentação das opiniões políticas do autor, vejamos como Régio diz pouco mais ou menos o que Engels dizia: “Quando as tendências ou atitudes políticas, sociais, éticas, religiosas, em vez de naturalmente se reflectirem nas obras dum artista, dum crítico, dum pensador, grosseiramente alugassem a máscara da arte, da crítica, do pensamento, para melhor realizarem impunes a sua verdadeira intenção de divulgação e propaganda (……) então a presença recusar-lhes-á as suas páginas.” Note-se a coincidência: tanto Engels como Régio usam o advérbio “naturalmente” para caracterizarem a inserção artisticamente eficaz das opiniões de tendência.

Como tentei mostrar e demonstrar, com factos e textos, se alguém se desviou das injunções saudáveis de Marx, foram os neo-realistas e não os presencistas. Quando se ama e se conhece bem a arte, os espíritos convergem.