“Para onde vamos?”

A 9 de Abril de 1891, João Arruda, um jovem de pouco mais de 20 anos, nascido na Ribeira de Santarém e filho de uma família de tipógrafos, escreveu em editorial no primeiro número do então ‘Correio da Extremadura’, hoje ‘Correio do Ribatejo’: “Para onde vamos? Terrivel interrogação esta que vemos esfumada nas densas e espessas brumas que cobrem o nosso horisonte social e político!

Por isso que ninguém nos póde responder senão dentro d’um dedalo de hypotheses, todas derivadas da morbidez que invade a constituição intima do nosso organismo social; por isso que temos graves aprrehensões acerca do futuro dos partidos militantes, hoje tão mal definidos no seu modo de ser, pela falta absoluta de escolas politicas; se virmos que o partido que temos acompanhado immerge no occaso que o fatalismo lhe preparou, caminharemos impellidos pela corrente evolucionista, esforçando-nos por seguir de perto ou junto d’aquelles que nos mostrarem a orientação concebida no lema: Patria e Liberdade!”

Cento e trinta anos depois, Jesus Alarcón Fernández, secretário-geral da Neobis – Asociación Empresarial de la Comunicación Gráfica (Madrid) admite que “estamos a atravessar momentos de incerteza que afecta a economia e o nosso quotidiano”, devido, afirma, ao “impulso que a digitalização recebeu desde o ataque à pandemia”.

A comunicação está a voltar-se, espero que não definitivamente, para os meios digitais e tudo tem servido para desacreditar os jornais em papel, como acusá-los, imagine-se, de “serem transmissores do vírus”.

O que transparece pelo meio destes dois comentários, é um espaço de tempo criador. Searas de letras num bailado secular ao vento que nem sempre soprou a favor daquilo a que se chama bom jornalismo.

Mas regressemos a 1891…

O ‘Correio da Extremadura’, hoje ‘Correio do Ribatejo’, – perceberemos mais à frente porquê -, apresentou-se aos seus leitores nos últimos raios de sol do século XIX como “Hebdomadario politico, agrícola, litterario, noticioso e annunciativo”, propriedade de João Arruda.

Assinar o Jornal custava “ao trimestre 350 réis, ao semestre 700 e ao anno 1$400 réis”.

Anunciava-se no “corpo do jornal a 30 réis a linha. Secção respectiva 20 rs. Réclames de 10 linhas, 400 réis”.

O estratagema, chamemos-lhe assim, seguido pelo proprietário e fundador para angariar assinantes, está bem explicado numa breve nota (edição de 9 de Abril de 1891) intitulada “Expediente”: “A administração do CORREIO DA EXTREMADURA roga a todos os cavalheiros a quem o jornal é remetido, a fineza da devolução do presente numero, caso não queiram honral-o com a sua assignatura. Em caso contrario serão considerados assignantes para todos os efeitos”.

João António Arruda conhecia bem a imprensa nacional e regional da época. Republicano convicto e moderado, admirador assumido de António José de Almeida (1866-1929) e António Ginestal Machado (1873-1940), envolveu-se nos acontecimentos que aceleraram o fim do regime monárquico.

Após a Revolta Republicana de 31 de Janeiro, no Porto, o jovem tipógrafo fundou a tipografia Moderna, no largo do Seminário, em Santarém, onde iniciou a publicação do semanário ‘Correio da Extremadura’.

Da ‘Extremadura’ ao Ribatejo

Virgílio Arruda, seu filho, prosseguiu a missão de seu pai à frente deste Jornal que a 4 de Janeiro de 1936 definia-se como um “semanário regionalista”, envolvido em todas as manifestações conducentes à criação administrativa da província do Ribatejo.

E em Janeiro de 1945 mudou mesmo de nome. Deixou a Estremadura e passou a designar-se ‘Correio do Ribatejo’ – ‘O Jornal de Todos e para Todos os Ribatejanos’, divisa que ainda hoje ostenta.

Na edição de 6 de Janeiro de 1945, no último ‘Correio da Estremadura’, é explicado o porquê da mudança: “O ‘Correio da Estremadura’, velho semanário com mais de meio seculo de vida, (…) vai passar a adoptar o titulo, aliás há muito exigido pela força das circunstâncias e até pela lógica da sua própria acção, ‘Correio do Ribatejo’”. “(…) Para que não haja desacordo entre o seu nome e a sua obra, há tanto afirmada na defesa dos direitos e aspirações regionais, se impunha esta alteração. (…) uma vez que do Ribatejo somos e pelo Ribatejo nos batemos”.

A edição seguinte vai para as bancas já como ‘Correio do Ribatejo’, a 13 de Janeiro de 1945: “Pela primeira vez afixamos hoje no cabeçalho do nosso jornal o ribatejano título, e nisto não fazemos mais – como explicámos no último número – do que ir ao encontro dos desejos dos nossos amigos e assinantes, que os temos e dos bons, entre eles alguns que nos acompanham em mais de meio século, desde que, fundada pela vibrante mocidade de João Arruda, a folha deu os primeiros sinais da sua presença. (…) Não modificaremos, portanto, nem os nossos processos nem os nossos hábitos, e se alguma alteração temos em mente é apenas a que nos dita o desejo de progredir, de melhorar, de fazer obedecer o mais possível o nosso Jornal às exigências do nosso espírito, que em nada diferem, antes procuram ser o porta-voz das mais vivas aspirações do Ribatejo”.

Santarém acolheu bem a mudança, a fazer crer no texto publicado por Virgílio Arruda no ‘Correio do Ribatejo’ de 20 de Janeiro de 1945: “Que foi bem compreendida a nossa atitude, ao afixar este ribatejano título no cabeçalho do velho ‘Correio da Estremadura’, dizem-no as muitas cartas que recebemos, de concordância e aprovação, por parte dos nossos amigos e leitores”.

A tipografia deixou de funcionar, no final de Setembro de 2005, quando foi impresso o penúltimo Jornal ‘Correio do Ribatejo’ a preto e branco.

Na comemoração do seu 117.º aniversário (2008), o Jornal aderiu às novas tecnologias e passou a ter página na internet. No ano seguinte, a administração do ‘Correio do Ribatejo’ e a Câmara Municipal de Santarém assinaram um protocolo que permitiu digitalizar, numa primeira fase, todos os números entre 1891 e 1951, para além da totalidade da edição de ‘O Santareno’ (1889, de Janeiro a Setembro), um Jornal que João Arruda fundou antes de editar o ‘Correio da Extremadura’.

A digitalização da segunda fase (1952-2012) decorre agora, prevendo-se a sua conclusão até ao final do presente ano, seguida da disponibilização pública das nossas memórias escritas de 130 anos!

Este Jornal sempre prestou um precioso auxílio a investigadores que buscam saber mais sobre toda esta vasta região. Há quem lhe chame o resumo ordenado da nossa história.

O advento da internet mudou o mundo de João e Virgílio Arruda. Mudou o nosso mundo e a forma como nos ligamos aos outros.

Mas esta nova era digital também tem riscos, e elevados, como a desinformação, acompanhada por novos modelos de negócio e a concentração dos meios existentes.

Papel vs Digital

Enquanto vos escrevo (Novembro de 2021), foi tornada pública uma carta aberta aos governos dos Estados-Membros da União Europeia para que não adoptem o DMA (Lei dos Mercados Digitais) a menos que sejam resolvidas deficiências significativas que apenas protegem o Google e o Facebook.

“A surpreendente pressa dos Estados-Membros em adoptar uma posição comum sobre o DMA, devido à necessidade de alargar a obrigação de aplicar condições de acesso justas e não discriminatórias a todos os serviços da plataforma e, no mínimo, ao Google e ao Facebook, só permitirá que esses gatekeepers discriminem conteúdos e decidam o que os europeus consomem, veem e leem”, pode ler-se na missiva.

A pandemia veio sublinhar a necessidade de consumirmos informação confiável, através de um jornalismo independente que nos mantenha devidamente informados.

A televisão e a internet, incluindo as redes sociais, são as fontes mais utilizadas pelos portugueses para ter acesso a notícias, mas entendo que, ao contrário do que muitos defendem, os jornais em papel, particularmente os centenários, enraizados que estão nas diferentes regiões que os leem, continuam a ter o seu espaço e a afirmá-lo.

Em pandemia a confiança nas notícias cresceu. Aumentou a procura das ‘novidades do nosso bairro’ e aí entra a imprensa dita de proximidade.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, alertou recentemente que “embora a tecnologia tenha transformado a forma como recebemos e partilhamos informações, às vezes também é usada para enganar a opinião pública ou para alimentar a violência e o ódio”.

Segundo um relatório anual do Instituto Reuters, Portugal continua a ser um dos países onde mais se confia nas notícias.

O confinamento parece ter motivado a necessidade de consumirmos informação de maior proximidade e, por isso, assistiu-se à valorização dos media regionais. Mas também foi trágico para muitos títulos centenários que se extinguiram ou migraram para o online.

O poder da Internet tem ganho aderentes a cada dia que passa, impelidos pela ‘onda’ do confinamento que nos mantem ligados, 24 horas por dia, ao digital, no trabalho que também rumou às nossas casas.

O sector está a atravessar uma profunda crise, e mesmo com o incremento das plataformas digitais a quebra registada nas vendas e nas assinaturas dos jornais em papel não foi acompanhada por um aumento significativo das assinaturas digitais na maioria dos títulos.

Lamentável, é, igualmente, num momento sensível como este, que o Plano de Recuperação e Resiliência não tenha acolhido as propostas que as associações do sector sugeriram, proporcionando mais apoio aos Media.

O Jornal onde escrevo já foi uma tipografia, onde o barulho das máquinas marcava, a compasso, o andamento de quem circulava naquela rua.

Hoje, o ensurdecedor silêncio tem pressa em acompanhar um rol de inovações e transformações tecnológicas que registámos nos primeiros 21 anos deste século.

João e Virgílio Arruda sabiam desenhar searas de letras em folhas amareladas pelo tempo. Nada sabiam sobre Robótica, Internet, Big Data, Realidade Virtual ou Aumentada, Impressão 3D, ou Inteligência Artificial (IA).

David Dieudonné, do Google News Lab, defende a importância da Inteligência Artificial nas redacções, o seu contributo para a literacia e na luta contra a desinformação. Ferramenta que “aumenta a eficácia das redacções, a capacidade de contar histórias e a possibilidade de fazer escolhas editoriais”, afirma.

A propósito do mais recente Dia Mundial da Liberdade de Imprensa (03 de Maio), Audrey Azoulay, directora-geral da UNESCO, admitiu ser “urgente e necessário” dar formação aos jornalistas e equipas que compõem os media sobre a utilização de Inteligência Artificial, “com a qual já lidam todos os dias, na maioria dos casos sem noção disso mesmo”.

Não quero acreditar que os editores de meios que ainda imprimem, o façam por “simples amor à camisola” em nome de uma causa de antanho, mas ninguém consegue prever o futuro. Recuso-me a acreditar que o papel impresso possa tornar-se obsoleto. Há quem defenda que fundir-se-á com o meio digital através da Realidade Aumentada.

Desafios que se levantam, diariamente, a projectos centenários, como o ‘Correio do Ribatejo’, que lutam pelo reconhecimento – que tarda – da elevação da Imprensa Centenária Portuguesa a Património Cultural Imaterial da Unesco.

Incertezas que se repetem desde 9 de Abril de 1891 – recordam-se? – numa inquieta, prolongada, tanto quanto desafiadora dúvida: “Para onde vamos?”.

Nota: Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico.