Poesia de rua em ritmo catatónico na década do betão

Não se pode dizer que o pequeno burguês não tenha lido nada. Pelo contrário, leu tudo, devorou tudo.

Só que o seu cérebro funciona como alguns aparelhos digestivos de tipo elementar. Filtra. E o filtro só deixa passar aquilo que é passível de nutrir a epiderme da boa consciência burguesa.1

À prédica enaltecedora do hip-hop nas periferias do capitalismo e ao roteiro que nos mostra o seu poder de influenciar transformações da cultura popular urbana nos anos oitenta e noventa do século passado, somaram-se sujeitos e lugares mais ou menos localizados por ligações de concordância, relações de poder prolixas e paradoxais.

Qualquer oposição às bolhas cognitivas dos acontecimentos, mesmo quando se trata de um distante próximo, seria uma quimera. Todas as vagas, todos os ímpetos, simbolizam partes de uma mesma onda de fragmentação.

Discorrer acerca dos papéis infra políticos de um ou outro artista, numa arte que cresceu em Portugal nas periferias do capitalismo, não leva a descurar que essa arte se afirmou como a orla justificante dos centros urbanos, do poder e das violências simbólicas a partir dos quais o underground sempre falou.

Formas artísticas de autores ditos marginais foram as em que mais holofotes incidiram; foi sempre desse modo que o centro, da direita à esquerda, sinalizou as suas grandes virtudes, como as de ser o lugar da sociedade permissiva: tolerando as diferenças e todos os réprobos da moral judaico-cristã a seguir ao fim da ditadura e ao fim do império colonial.

O historiador Enzo Traverso, numa entrevista cedida ao editor Simón Vázquez a propósito do seu recente livro La cuestión judía. Historia de un debate marxista, publicada na Jacobin Lat e republicada pelo jornal esquerda.net com tradução de Carlos Carujo, trouxe para o diálogo princípios de alteridade e diversidade como constitutivos da política, ‘Se a política se converte na criação de uma comunidade homogénea, isso é a negação da política, ou seja, é a política do fascismo’.

No hip-hop editado em Portugal durante o cavaquismo, rappers, homens e mulheres, deram os primeiros passos na edição de repertórios, gravaram os primeiros discos e apresentaram espectáculos com maior dimensão. Uma altura em que a indústria fonográfica pôde fazer previsões por agouros, pois gozava de um momento fecundante: vendiam-se discos e para um artista com poucos recursos financeiros gravar num estúdio de uma multinacional, como veio a acontecer, era ‘uma conquista da qual dificilmente abriria mão’2; para muitos o estúdio não estava, como hoje, no computador. Não deixava de ser um alcance, uma chegada à indústria musical, não desprovida de tensões e ambivalências. As cedências necessárias para os que apostaram na música como principal ocupação, passível de se tornar na única actividade. Talvez assim possamos explicar a retroalimentação com uma cultura de direita3, ou melhor, uma cultura do centro4.

A permanência de um modelo político neo-liberal à direita coincidiu com o desenvolvimento de um movimento artístico que crescendo periférico paulatinamente se afirmou no centro como centro; enquanto um movimento do centro ia sendo disseminado nas periferias: o de uma indústria de novas publicações de conteúdos audiovisuais com a oficialização de canais independentes (SIC 1992, TVI 1993), Correio da Manhã Rádio (1983-1993); imprensa: Jornal Blitz (1986-2006), semanário O Independente (1988-2006), ou mesmo a Revista K (1990-1993). Lugares que apesar de se assumirem, maioritariamente, conservadores foram contraponto ao conservadorismo rasante, afirmando-se simultaneamente cultos, liberais, distintos das publicações de esquerda que prevaleciam pós 25 de Abril de 1974.

Essa cultura do centro reunira escreventes e leitores da esquerda à direita e tornou-se uma das vias privilegiadas na difusão do hip-hop em Portugal.

Assim, o hip-hop que se tornara a banda sonora do bairro, do subúrbio, daquilo que esteve à margem do capital cultural, procurou, em simultâneo, fixar a sua identidade no itinerário discográfico e televisivo, obnubilando, algumas vezes, rotas de resistência.

Essa ambiguidade, auxiliada pela euforia dos fundos europeus e pelo surgimento de canais de televisão independentes, coincidiria, aliás, com uma altura em que companhias discográficas com projecção nacional e internacional (EMI-Valentim de Carvalho, Sony Music, BMG, Vidisco ou mesmo a Norte Sul, agregada à Valentim de Carvalho, que, tal como a Popular, se dedicou à produção de programas televisivos, além da comercialização de discos na sua rede de lojas) ainda preservavam influência junto da juventude urbana mais ou menos melómana.

Porque é que em 2023, no âmbito das celebrações do cinquentenário do hip-hop, pouco se explana que, à semelhança de outras práticas artísticas de matriz urbana, este se tenha tanto distanciado, como roçagado ou mesmo sido cooptado pela indústria cultural de maneira a legitimar a sua retórica de heterogeneidade e abertura? Que tanto tenha procurado afirmar guiões de uma vivência de bairro como embarcado numa genuflexão com as instituições de poder que inicialmente criticou, algumas vezes num servilismo que aniquilou discursivamente as liberalidades artísticas fora do centro de outros? Medo de perder presença no espaço público?

Sendo uma temática sensível, haverá uma maneira de debater como a colonização das formas artísticas alberga a sua coisificação pelas indústrias culturais? E que será sempre este o anátema em quaisquer artes que afirmem crescer, sub-existir, nas periferias do capitalismo?

Na capa do número 277 do O Independente, a 3 de Setembro de 1993, Gonçalo Pires Marques num texto medíocre usava a parangona ‘Relatório Secreto sobre os Gangs. Alta Tensão. Serviços Secretos investigam gangs negros violentos na margem sul. O relatório é assustador’. Polemizar sem consequência alguma num debate tardio foi a estratégia dos média em Portugal, capitalizando um discurso de minorias, criando dubiedades, dir-se-á agora instrumentalizando, criando tokens que assegurem a aura de tolerância do universo político e o logro da representatividade cultural. Pois se fulanizar foi um mote eficaz na estigmatização de uma população dos arrabaldes da capital – um programa como Casos de Polícia deixa isso claro ao ver nas ‘desterritorialização’, ‘africanidade’, ‘violência nos bairros’, não temas com direito a contraditório mas metas para terem audiências – a representatividade tem incorrido num problema da mesma espécie, ao invés de representar, singulariza, justificando assim o caminho que foi feito e não aceitando a crítica. Bastará ver como nos debates sobre práticas artísticas e descolonização, alguém sempre se levanta para dizer ‘mas nós temos aqui um artista negro, um pobre, um gay, uma lésbica, um ou uma trans’, crendo ou levando a crer, ao fazer por evidenciar a amostra, num distintivo ‘representatividade’.

Um aspecto curioso, é como anos depois, o mesmo semanário daria destaque a uma entrevista realizada na redacção com o grupo Black Company a respeito do disco Geração Rasca (1995). Álbum que sucedeu a edição da compilação RAPública (1994). É de notar como essa obra contava com a produção de André Roquette e Tó Ricciardi, e que um dos singles de avanço apresentou a faixa ‘Abreu’ num teledisco realizado por Edgar Pêra que à época colaborava como repórter de imagem no O Independente. São apenas dois exemplos. Trago-os à colação, porque acredito que podem dilucidar melhor quanto à ligação estreita entre uma cultura do centro, alguma de direita, e os primeiros rappers a gravar em Portugal representados pelas companhias discográficas a partir da edição de RAPública, mas ainda a aceitação vs não aceitação das propostas artísticas. Convém relembrar que o semanário O Independente teve um alvo claro, Cavaco Silva e o cavaquismo, um dos alvos do grupo Black Company quando editaram Geração Rasca ou do rapper General D quando cantou ‘Cavaco quer Kumbu’ [dinheiro], e que a expressão ‘geração rasca’ fora cunhada pelo jornal Público após as manifestações contra a Prova Geral de Acesso, conhecida como PGA, na altura em que Manuela Ferreira Leite era Ministra da Educação.

Enquanto um semanário como O Independente contribui para o desgaste político do cavaquismo, salientou-se o lado festivo que também nutria, evidentemente, o hip-hop, estabelecendo paralelos superficiais entre bem-estar, tangível e intangível, de classes e grupos sociais muitíssimo diferentes vistos do ponto de onde partiam, ou seja, das classes baixas às médias e médias-altas à juventude de origens sociais, económicas, étnico-raciais, díspares. Foi essa a narrativa relevante para os sucessos políticos de Cavaco Silva, sendo assaz curioso como o hino da campanha de Aníbal Cavaco Silva em 1996 foi escrito e interpretado pelo rapper Boss AC, um dos integrantes da compilação RAPública.

A ideia de privilégio de uma elite que informava e cultivava o ‘gosto do povo’, como mencionou o historiador António Araújo a despeito da imprensa destas décadas, foi favorável à reificação de itinerários socioculturais das juventudes urbanas desta década, indiferente da tipologia musical e do dispositivo artístico. Neste ambiente-trampolim, ao contribuir para a massificação dos primeiros registos fonográficos do hip-hop, numa retórica que realçou a sua racialização, a sua estigmatização social e a sua etnicidade, permitia-se, aparentemente, reforçar mecanismos de identidade que viriam a dar um sentido de espectacularidade aos percursos biográficos dos pioneiros. Pese embora o facto de a contestação estar bastante presente no arranque do hip-hop em território português (1986-1992), antes da sua gravação discográfica, como se verificou na consulta de VHS, cassetes caseiras, ou nas primeiras entrevistas cedidas por estes actores, e serem opção nas letras de alguns artistas, existiu, paralelamente, a criação de repertórios onde a conotação política ou uma manifestação de carácter ideológico não estiveram presentes. O que até se pode justificar facilmente: os rappers em Portugal, à semelhança do que aconteceu nos EUA, inspiraram-se na rua e na rua as realidades transcenderam os seus imaginários: o colonialismo (General D 1994, Portukkkal é um Erro), a exclusão social (Zona Dread 1994, Só queremos ser iguais), o machismo (Djamal 1997, Abram Espaço); mas também a festa e uso do crioulo (Family 1994, Rabôla Bo Corpo), o encontro (Black Company 1994, Nadar), a alusão a comunidades e cliques (Boss AC 1994, Generate Power) ou as sociabilidades como resposta ao capital cultural americano que motivara primeiramente (Geração Rasca 1995, Kom-tratake 1997).

Nas contrariedades de movimentos artísticos reclamadores das suas diferenças e das suas margens, talvez seja mais justo sublinhar como, até hoje, a contaminação se sobrepõe ao discurso da margem. Só ela se tornou imprescindível.

A bifurcação faz parte do processo de afirmação do hip-hop, não sendo, com certeza, diferente de outras formas artísticas urbanas. Por um lado, continuará a florir nos jardins interiores do poder, reforçando os seus argumentos de abertura a um certo ‘outro’, o ‘outro’ que enche salas de espectáculos e simboliza a ‘voz de uma geração’, sendo automaticamente excluídas todas as, que embora com pontos de partida sociais-económicos similares, não aspiram ou ‘atingem’ um estrelato – reparem como até Pedro Adão e Silva, actual Ministro da Cultura, teve uma palavra sobre a crioulização do hip-hop –, por outro lado, não convém esquecer que foi esse mesmo contágio (entre-lugares de onde eram oriundos, ou dos quais descendiam, os primeiros rappers e os média), que nutriu a cultura pop em Portugal, que os afastou aos poucos das referências americanas e levou a introduzir outra gramática, distinta do capital cultural anglo-americano que até aí dominou as suas influências.

A reprodução de um estilo americanizado, onde algumas realidades sociais escritas se tocavam, próprios de um hip-hop em gestação, deu lugar a um recém-nascido hip-hop, territorial, concentrado na duplicidade nacional, nas raízes, na natureza ora das suas lutas ora da complacência com uma burguesia sorvedora de novidades, que, ouvindo e lendo muito, não terá digerido as nuances da ambiguidade, como aqueles momentos em que General D ou o grupo Djamal (primeiro grupo de mulheres rappers a gravar em Portugal por uma multinacional) estiveram próximos de uma canção literária de protesto em diálogo com o mapeamento geográfico, imperialista, burguês e branco; atenta quer a quadros temporais onde permaneciam duras memórias colectivas (como os da Guerra Colonial e da Descolonização) ora das ocorrências provindas da vida no bairro ou, mesmo que na cidade, nas franjas mais vulnerabilizadas da, apelidada frequentemente pela imprensa deste período (1984-1998), ‘segunda geração’, mas também na vivência da mulher negra pobre, duplamente discriminada: dentro e fora da comunidade.

O hip-hop lembra, assim, tudo e o seu contrário, o sim contra-poder e o não tudo-é-poder. Acredito que todos os movimentos sociais e artísticos se equiparam na bifurcação; cada pessoa ou projecto continuará a escolher um dos lados. Ou nenhum dos dois. Como cantou General D em Raiz Desenraizada: Eu sou aquele que cresceu sem saber se era africano ou africano queria ser.

Notas:
1 Aimé Césaire, Discurso Sobre o Colonialismo [...], tradução: Diogo Paiva; VS. Editor e Présence Africaine (2023).
2 Rapublicar. A micro-história que fez História numa Lisboa adiada. QR-Code para entrevistas. Caleidoscópio (2017).
3 ‘cultura de direita’, designação usada pelo historiador António Araújo no livro Da Direita à Esquerda Cultura e sociedade em Portugal, dos anos 80 à actualidade, editado em 2016 pela Saída de Emergência.
4 ‘cultura do centro’, designação que uso no livro Fixar O Invisível. Os Primeiros Passos do RAP em Portugal 1986-1998, livro que resultou de um ensaio-dissertação académicos editado à posteriori (2019) a convite da Editora Caleidoscópio; terminologia que considero mais ajustada às ambivalências dos itinerários abordados.

 

Soraia Simões de Andrade

(1976)
Escritora e investigadora (bolseira FCT)
Fotografia de José Fernandes

Mais do autor