A fórmula

Dados da Global Wealth Report do início do ano de 2023 revelaram que há 1% de portugueses que controlam um quinto da riqueza do país. Em contrapartida, a metade mais pobre da população não detém mais de 6,5% dos bens nacionais. As informações constantes deste relatório pecam, aliás, por defeito, uma vez que se baseiam nos fluxos de capital e participações sociais em empresas, não abrangendo uma parte significativa da fortuna das famílias em causa, como propriedades, bens imobiliários ou objetos de arte. Com base no ranking das maiores fortunas portuguesas da revista Exame, há pelo menos sete famílias que acumulam uma fortuna superior a mil milhões de euros[i]. Esta concentração da riqueza em Portugal acompanha, de resto, a enorme desigualdade na distribuição dos recursos a nível mundial.

Nos EUA, um dos países mais desigualitários do mundo, 1% de indivíduos possui mais de um terço da sua riqueza. Em números publicados o ano passado, oito das 10 maiores fortunas mundiais são detidas por norte-americanos, totalizando a soma astronómica de 807 mil milhões de euros[ii].

Trata-se de um fenómeno sistémico que o reputado economista francês Thomas Piketty apelida de “capitalismo patrimonial” e que se traduz, a uma escala nunca antes vista, na apropriação continuada e exponencial de riqueza nas mãos de uns poucos em detrimento do bem-estar geral, constituindo o que ele designa por “classe de casta”, tal a disparidade de rendimentos, a concentração extrema da riqueza e o exclusivismo social que engendra. Estamos perante um novo patamar da exploração capitalista induzido pelo neoliberalismo globalizado. Grande parte desta situação radica na problemática dos “hipersalários” dos quadros empresariais dirigentes a nível mundial.

A este respeito, importa atentar na análise que Thomas Piketty faz do fenómeno, referindo mesmo níveis de remuneração “inéditos na história”[iii]. A explosão das remunerações destes “super-quadros” dirigentes das grandes empresas sustenta a fórmula avançada por este autor – r>g – que significa que o rendimento de capital é maior que a taxa de crescimento do rendimento nacional, sendo que r é o rendimento do capital – medindo os proventos anuais de um capital, qualquer que seja a forma jurídica que tomam esses rendimentos (lucros, juros, rendas, dividendos, royalties, mais-valias, etc) – e g a taxa de crescimento da economia, equivalente ao crescimento do rendimento nacional. Quanto mais a taxa de rentabilidade do capital exceder a taxa de crescimento da economia (r>g), mais a riqueza se acumula no topo e mais desigual é a sua repartição. Quando a taxa de crescimento da produção mundial se situa entre 1,5-2% em média e a taxa de rendimento puro do capital (antes dos impostos), 4,5-5% em média, com tendência para aumentar esta discrepância[iv], isso dá-nos bem a medida não só da extrema desigualdade na distribuição de riqueza da atual fase de exploração capitalista, como para a grave distorção que induz no funcionamento das nossas sociedades.

Como se atingem tais disparidades de rendimento? Enquanto as teorias económicas tradicionais consideram que os salários, independentemente do seu nível, são determinados pela produtividade do trabalhador (teoria da produtividade marginal), Piketty afirma que isso não faz qualquer sentido, pois o que conta é o poder negocial no mercado laboral (e a consequente influência social e política na comunidade) e não a produtividade. Os gestores de topo estão em condições de estabelecer os seus próprios salários, ao passo que a generalidade dos trabalhadores não tem essa possibilidade. Piketty dá-nos o exemplo de uma grande empresa multinacional que emprega 100 mil trabalhadores em todo o mundo e tem um volume de negócios anual de cerca de 10 biliões de euros, dispondo cerca de metade deste valor para a remuneração dos seus funcionários, isto é, uma média de 50.000 euros anuais por assalariado. Como refere o economista francês, “Para fixar o salário do diretor financeiro da sociedade (ou dos seus adjuntos, ou do diretor de marketing e da sua equipa, etc.), era necessário, em princípio, estimar a sua produtividade marginal, isto é, a sua contribuição aos 5 biliões de euros de valor acumulado: será esta de 100.000 euros, 500.000 euros ou 5 milhões de euros por ano? É evidentemente impossível responder de forma precisa e objetiva a esta questão. […] Vê-se bem que a estimativa obtida será inevitavelmente muito aproximativa, com uma margem de erro muito superior ao máximo da remuneração previsível para esta posição, inclusive num ambiente económico totalmente estável.”[v] A conclusão impõe-se: “Em todo o caso, tendo em conta a impossibilidade de estimar precisamente a contribuição de cada um na produção da empresa referida, é inevitável que as decisões provenientes de tais processos sejam, em grande medida, arbitrárias e dependentes das relações de força e dos poderes de negociação de uns e de outros.”[vi]

É certo que o critério das qualificações e competências específicas impõe certos limites à fixação de salários. Mas, como sublinha Piketty, “nomeadamente no seio das hierarquias de gerência das grandes sociedades, as margens de erro sobre as produtividades individuais tornam-se consideráveis.”, pelo que “O poder explicativo da tecnologia e das qualificações fica cada vez mais fraco e aquele que decorre das normas sociais, cada vez mais forte.”[vii] Não admira, nestas circunstâncias, que grasse o compadrio e o amiguismo. Será normal que o montante superior das remunerações atinja 30% ou mais da massa salarial numa empresa? Trata-se, obviamente, de um absurdo, mesmo à luz dos conceitos mais elementares da gestão societária.

A fixação destes “hipersalários” pouco tem, pois, a ver com qualquer lógica racional de produtividade, sendo difícil descortinarmos as variações e volumes observados na remuneração dos quadros dirigentes e a performance das respetivas instituições. São sobejamente conhecidos os casos de prémios avultados pagos a gestores que levaram as suas empresas à falência ou de indemnizações chorudas recebidas na sequência de decisões estratégicas desastrosas, para já não falar do aproveitamento de prolongadas situações de monopólio ou de generosas concessões públicas de financiamento a empresas “grandes demais para falirem”; o que se passou com a crise financeira de 2008 é um exemplo paradigmático de tais situações. São os supergestores ou superexecutivos corporativos que atribuem a si próprios lucrativos salários e compensações financeiras e patrimoniais. Por isso, qualquer ideia de esforço ou mérito, alicerçada na teoria económica da produtividade marginal – que faz corresponder as remunerações à produtividade de cada um – é, neste contexto, um mito.

Pelo contrário, e a partir de determinado nível, é o poder político e social das classes possidentes que determina a concentração da riqueza e os números astronómicos dos rendimentos destes dirigentes. A contribuição que dão para a valorização das empresas é, em grande medida, uma falácia. A sua principal preocupação é aumentar os respetivos proventos, despedindo trabalhadores e encarecendo os produtos e serviços que colocam no mercado, em implacáveis processos de reestruturação e em despudoradas derivas especulativas. De igual forma, os salários baixos pagos aos trabalhadores têm a ver com o grau de exploração imposto nos vários setores económicos e com a consequente avaliação social negativa derivada do pouco peso político que estes têm na sociedade, e não com qualquer apreciação racional sobre a complexidade ou penosidade do trabalho, ou sequer as competências requeridas para o efeito. É a apreciação social e o poder negocial das partes envolvidas que verdadeiramente determina as decisões remuneratórias. Até porque os comités de remunerações são constituídos por quadros dirigentes, eles próprios com elevados níveis salariais, limitando-se as assembleias de acionistas a sufragar as suas decisões.

No comentário certeiro do cronista e crítico literário do jornal Público, António Guerreiro, “A grande mentira implícita nos hipersalários da burguesia remunerada em excesso é a de que refletem um valor de mercado e a eles acede por mérito quem detém competências e conhecimentos raros que geram valores enormes.”[viii] A origem dos hipersalários radica, verdadeiramente, numa arbitragem endógena de interesses e benefícios que têm mais a ver com a afirmação do poder das empresas em causa perante as suas concorrentes – uma espécie de potlatch empresarial – em que o que se perde em investimento produtivo, se pensa vir a ganhar em reconhecimento, prestígio e afirmação. As despesas de representação e o exclusivismo social sobrepõem-se às lógicas mercantis e à eficiência empresarial.

Esta concentração de rendimentos no topo da estrutura de remunerações não corresponde a qualquer mérito de desempenho, mas a um verdadeiro estatuto de privilégio. O empreendedorismo transforma-se, assim, em escandalosa sinecura.

Mais do que desigualdades funcionais, como é o caso das disparidades de remuneração em função de competências ou responsabilidades acrescidas no seio da organização – ou seja, pelo efeito de exigências operacionais que indexem as retribuições à respetiva contribuição para os resultados da empresa – o que temos é uma competição pela notoriedade. A um princípio racional de alocação dos recursos, passamos rapidamente à arbitrariedade do exclusivismo e do desperdício sumptuário.

Até o insuspeito – porque assumidamente liberal – analista político Pedro Marques Lopes, numa crónica na Visão intitulada “Os salários dos gestores e o capitalismo”[ix], e aduzindo ao exemplo “particularmente chocante” do CEO da Jerónimo Martins, cujo salário é 262 vezes superior à média dos trabalhadores da empresa, chega à seguinte conclusão: “Não há forma de o maior defensor do capitalismo conseguir provar a um trabalhador de uma empresa, em que a disparidade salarial é tão gritante, que há qualquer lógica nisto e que essa  diferença é boa para a comunidade. E não há forma porque é exatamente o seu contrário.” Nem mais!

Notas:
[i] Visão, 2/2/2023.
[ii] Visão, 17/2/2022.
[iii] Cf. Thomas Piketty, Le Capital au XXI siècle, Paris, Seuil, 2013, p. 477 (tradução minha de todas as citações deste autor).
[iv] Piketty, 2013, p. 561.
[v] Piketty, 2013, p. 526.
[vi] Piketty, 2013, p. 527.
[vii] Piketty, 2013, p. 530.
[viii] Público, 30/12/2022.
[ix] Visão, 19/1/2023.

 

Hugo Fernandez

(1961)
Investigador do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade de Évora

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