Urbano Tavares Rodrigues e o esplendor da vida

A arte serve para conhecer o mundo

Urbano Tavares Rodrigues

Autor de uma obra fecunda e multifacetada, que se partilhou entre a crónica jornalística, a literatura de viagens, o ensaio, a tradução, o teatro, a poesia e, sobretudo, a ficção, Urbano Tavares Rodrigues (1923-2013) merece ser amplamente recordado como um “escritor completo” (Miguel Real), para além das justas homenagens que este ano celebram o centenário do seu nascimento. O olhar apaixonado, a lúcida apreensão do real, a implicação cívica e o fascínio pela mudança constituíram os eixos essenciais do seu percurso de artista e de cidadão, caracterizado pela fraternidade e pela luta constante em prol de um mundo melhor.

Ao longo de seis décadas de produção literária, o escritor empenhou-se intensamente numa busca ética, estética e política, que se desdobrou entre a esperança e o desencanto, a luz e as trevas, através de um discurso irradiante, de grande plasticidade, pontuado pela diversidade das paisagens, pela temática do amor e da morte, pela metaforização poética e pela subtileza de um estilo por vezes irónico para melhor interrogar as pulsações secretas do seu tempo.

Nascido em Lisboa a 6 de Dezembro de 1923, Urbano passou a infância no Alentejo, num monte da família paterna, perto de Moura, espécie de paraíso perdido que marcou uma parte da sua obra. Aos dez anos regressou à capital para frequentar o liceu Camões. Enquanto frequentou a universidade, foi repórter no Diário de Notícias e fez crítica teatral n’O Século. Em 1949, formou-se em Românicas na Faculdade de Letras de Lisboa. No mesmo ano, partiu para França e exerceu o cargo de leitor nas universidades de Montpellier (1949), Aix-en-Provence (1951) e Sorbonne (1952-1955). Ao regressar a Portugal, em 1955, trabalhou na publicidade, foi jornalista no Diário de Lisboa, ensinou no Colégio Moderno e no Liceu francês, antes de ser convidado, em 1957, para assistente de Vitorino Nemésio na Faculdade de Letras, de onde foi expulso dois anos mais tarde, por ter participado, em 1958, na campanha do general Humberto Delgado à Presidência da República. Em 1969, ingressou no PCP onde permaneceu até ao fim da vida, apesar de criticar algumas posições mais ortodoxas do Partido. Durante a Ditadura, envolveu-se em muitas batalhas da oposição, foi preso e torturado várias vezes pela PIDE, passando cinco meses de isolamento em Caxias onde escreveu Contos da Solidão (1970), em condições extremamente difíceis. Depois da Revolução dos Cravos, a convite de Lindley Cintra, regressou ao ensino universitário, doutorou-se em 1984 com uma tese sobre Manuel Teixeira Gomes, e jubilou-se em 1993 como catedrático.

No domínio ensaístico, o escritor publicou crítica literária em vários jornais, colaborou em revistas como a Vértice e a Seara Nova, entre outras, escreveu recensões, prefácios e estudos luminosos, interessando-se em particular pelo mito de Don Juan, pela condição feminina, pela problemática da morte, e sobretudo por uma concepção da literatura enquanto “escreviver”, considerando que a intervenção social e a militância política se conjugam sempre com a construção de uma ética da dignidade e de um verdadeiro sentido para a vida. Esta dimensão atravessou toda a sua obra ficcional, inaugurada com A Porta dos Limites (contos, 1952) e concluída com a narrativa póstuma Nenhuma Vida (2013). A Dom Quixote começou a editar as suas Obras Completas em 2007, tendo publicado até hoje apenas três volumes.

Dotado de uma “costela de comunista e outra de franciscano”, tal como se autodefiniu numa entrevista, Urbano combinou sempre estas duas vertentes no exercício da escrita, atento à complexidade das relações humanas e aos seus dramas.

Próximo dos existencialistas, em particular de Camus – que conheceu em Paris e de quem traduziu O Mito de Sísifo -, o ficcionista aprofundou, na primeira fase da sua obra (Vida Perigosa, 1955; A Noite Roxa, 1956; Uma Pedrada no Charco, 1958), o absurdo da vivência sentimental e erótica que culminou em Bastardos do Sol (1959), romance com alguns laivos de neo-realismo, mesmo se nunca aderiu a este movimento. Na década seguinte, Urbano abriu-se ao experimentalismo das vanguardas e à enunciação da resistência para examinar as consequências de um espaço apodrecido pelo fascismo (Os Insubmissos, 1961; Exílio Perturbado, 1962; Dias Lamacentos, 1965; Imitação da Felicidade, 1966, proibido pela censura). Depois de 1974, o escritor recorreu muitas vezes a processos inovadores como as colagens, as citações e a sobreposição de diferentes pontos de vista, para transmitir as emoções da vivência cosmopolita e a exaltação da aventura colectiva, que se alargaram, em seguida, à denúncia da alienação burguesa e à apreensão desencantada pós-revolucionária (Dissolução, 1974; Viamorolência, 1976; As Pombas são Vermelhas, 1977; Desta Água Beberei, 1979).

Observador entusiasta dos movimentos sociais e políticos, antes e depois do 25 de Abril, Urbano escreveu sempre “à flor do tempo”, como observou Eduardo Lourenço, evoluindo entre a dimensão telúrica alentejana e o cosmopolitismo mais desafiante, misturando o onírico e o fantástico, o erótico e o dramático. Nos anos 80, inventou atmosferas centradas na escrita do corpo desejante (Fuga Imóvel, 1982), na adesão visual a lugares da ansiedade (Oceano Oblíquo, 1985), na tentação distópica (A Vaga de Calor, 1986), ou ainda na experiência do labirinto (Filipa nesse dia, 1989), manifestando uma grande curiosidade pelos novos comportamentos instaurados pela democracia. O itinerário do ficcionista privilegiou ainda a dimensão crepuscular do amor (A Hora da Incerteza, 1995), a denúncia da desordem social (O Ouro e o Sonho, 1997), a violência dos afectos (O Adeus à Brisa, 1998), a problemática do Mal (O Supremo Interdito, 2000), mas também a meditação poética alimentada por uma viagem descrita em Rostos da índia e alguns sonhos (2005) como experiência fascinante e partilhada de um deslocamento aberto à Diferença.

A memória do escritor resgatou com alguma frequência descobertas infantis comoventes, experiências amorosas contraditórias, recordações da prisão onde a amargura alternou com a solidariedade, bem como percepções do desencanto provocado pelo fim de uma história, individual ou colectiva. O sentimento de perda acentuou-se sobretudo nas últimas obras com o perfil impiedoso da sociedade portuguesa contaminada pela agonia, pela corrupção e pelo desastre ecológico (O Eterno Efémero, 2005; Ao Contrário das Ondas, 2006; A última Colina, 2008). Porém, o artista ávido de beleza, que sempre escreveu para seduzir o leitor, nunca abdicou de mobilizar palavras de intensidade (Assim se esvai a vida. Três livros num só, 2010), nem de acumular “contos e sonhos”, mostrando como a paixão conviveu habilmente com o insólito e com a provisória aceitação do fim (Os Terraços de Junho, 2011).

Toda a trajectória literária de Urbano, caracterizada pela procura de outras formas de dizer o real, acompanhou sempre as metamorfoses do país e do mundo, enunciando as novidades, os conflitos, as ameaças, as injustiças, as diferentes crises e sobressaltos, os perigos da mundialização, desenhando, em suma, um tempo marcado pelo sentido da responsabilidade e por uma indefectível vibração da esperança, mas também por uma inquietação tingida pela reflexão obsessiva sobre os mistérios da morte.

Testemunha eloquente das surpresas, das ilusões, das lutas, das decepções e das conquistas que a sociedade portuguesa conheceu durante quase um século, o ficcionista transmitiu-nos uma série de mundividências onde a subjectividade mais íntima se cruzou harmoniosamente com o social, o político e o cultural.

No curto texto de introdução a Nenhuma Vida (2013), livro de despedida com o subtítulo de “romance breve”, Urbano observou, com alguma melancolia: “Daqui me vou despedindo, pouco a pouco, lutando com a minha angústia e vencendo-a, dizendo um maravilhado adeus à água fresca do mar e dos rios onde nadei, ao perfume das flores e das crianças, e à beleza das mulheres.” Nesta narrativa, “apaixonadamente” elaborada “num Verão bastante fresco, pouco antes de fazer noventa anos”, encontramos de novo o eco das transformações sociais, os sentimentos, os desejos, o erotismo por vezes estereotipado, as dúvidas em que se movem os seres humanos, alimentados de audácia e desespero. De certa maneira, este livro póstumo contém em si a súmula de todos os outros e traz a novidade de entrelaçar a efabulação com o fac-símile fragmentado do manuscrito original, revelando a respiração fugaz das palavras, as hesitações da mão escrevente, os espaços em branco, o ritmo das correcções, fazendo-nos penetrar nos segredos da oficina do escritor. Ao descrever o percurso frenético e dramático de Tiago Manuel, um “herói lendário” alentejano – cujo nome inverte o famoso pseudónimo literário de Álvaro Cunhal -, o narrador desenhou, pela última vez, o retrato cruel de um mundo dilacerado entre vários lugares, mas investido num mesmo combate pelo futuro (a Reforma Agrária, a emigração, o movimento dos “indignados”), destacando a liberdade, a viagem, o amor, a beleza e a morte como constantes fundamentais de um roteiro que sempre associou a utopia e a pulsão lírica, e que, na verdade, nunca abandonaram a sua prosa ficcional desde 1952, fechando assim um círculo de coerência e de rigor estético. Consciente da proximidade do fim, Urbano insistiu na urgência de escrever, movido pelo seu temperamento de velho lutador e pela energia de uma tensão ontológica bem explícita nas palavras com que apresentou a sua derradeira obra, tendo como único corolário a inevitável queda no abismo. Nas últimas linhas do texto introdutório, o prefaciador constatou já não ter “tempo de vida” suficiente para analisar o livro, legando essa tarefa crítica ao leitor e limitando-se apenas a sonhar com “o esplendor da vida”, porque “tudo será luz”. A morte virá ceifá-lo a 9 de Agosto de 2013, em Lisboa.

Maria Graciete Besse

(1951)
Professora catedrática aposentada da Sorbonne (Paris 4)

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