A alimentação enquanto um problema complexo e perverso
Em inglês, utiliza-se a designação wicked problems para caracterizar problemas ou questões que parecem ser impossíveis de resolver pelo aglomerado de eventos e acontecimentos em que estão envolvidos. A alimentação pode ser inserida nesta categoria na medida em que a sua garantia aos vários indivíduos que habitam o planeta não está assegurada, apesar dos vários esforços que têm vindo a ser feitos. Se em contextos de escassez e de crise, tornam-se relativamente evidentes as causas dos problemas alimentares, em contextos de estabilidade e abundância, eles adquirem novos contornos e induzem a questionamentos: o que justifica a prevalência de fome, pobreza e insegurança alimentar em países desenvolvidos? o que pode ser feito para mitigar estes desafios? qual o papel de entidades como o Estado, o Mercado e o Terceiro Sector? como enquadrar a alimentação enquanto direito humano? como garantir a sustentabilidade dos sistemas alimentares?
No contexto nacional, estas e outras questões têm sido alvo de profunda reflexão por parte de cientistas, políticos, interventores, jornalistas e membros da sociedade civil. Em termos práticos, vários instrumentos de mitigação das carências alimentares da população e de promoção da segurança alimentar têm sido mobilizados ao longo dos anos. Em 2011, destaca-se a implementação do Programa Escolar de Reforço Alimentar (PERA), que visava apoiar crianças e jovens com necessidades severas em contexto escolar; e a criação do Programa de Emergência Alimentar, que reforçou e estabeleceu uma rede solidária de cantinas sociais. Em 2012, salienta-se a criação do Programa Nacional para a Promoção da Alimentação Saudável (PNPAS) que incidia o seu foco de atuação sobre as doenças crónicas e, em particular, a obesidade; e a criação da Rede Portuguesa pela Soberania e Segurança Alimentar (REALIMENTAR) que integra várias organizações pertencentes à sociedade civil e tem como principal objetivo influenciar políticas públicas em matéria de soberania e segurança alimentar. Mais tarde, em 2015, dá-se a criação do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas (POAPMC) que surge com o propósito de promover a inclusão social e gere o Fundo Europeu de Auxílio às Pessoas Mais Carenciadas (FEAC). No ano seguinte, surge a Comissão Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar (CNCDA) que pretende de forma concertada endereçar esforços de mitigação ao referido fenómeno. Em 2017, dá-se o lançamento da Estratégia Integrada para a Promoção da Alimentação Saudável (EIPAS) que assenta em 51 medidas para melhorar a qualidade da dieta dos portugueses. Em 2018 e 2019, são dados importantes passos para enquadrar a alimentação como um direito humano, nomeadamente com o processo de monitoramento da implementação do Direito à Alimentação Adequada em Portugal e com a discussão do projeto de “Lei de Bases do Direito Humano à Alimentação Adequada”. Mais recentemente, em 2021, adquiriu visibilidade a criação da Rede de Emergência Alimentar que procura assegurar, de forma integrada, um sistema alimentar saudável e sustentável (para mais informações, consultar o site DHANA).
Paralelamente a estas medidas, interessa ressalvar também as múltiplas iniciativas de assistência alimentar que advêm de esforços da sociedade civil e do designado terceiro sector. A este respeito, torna-se inevitável dar conta, por um lado, do papel decisivo da Igreja Católica e das várias articulações e esforços que tem realizado para apoiar os mais desfavorecidos e, por outro lado, do Banco Alimentar Contra a Fome, que representa a principal organização não-governamental a atuar no campo da ajuda alimentar. Também entidades como as Misericórdias, Cáritas e Cruz Vermelha têm desempenhado um papel central no combate à pobreza alimentar. Importa ainda evidenciar as organizações que incluem no seu leque de intenções o combate ao desperdício de alimentos e o compromisso com a promoção de valores ligados à sustentabilidade, tais como a Refood, o movimento Zero Desperdício e a cooperativa Fruta Feia. Estas últimas surgem mais tardiamente e num contexto de crescente consciencialização para os problemas estruturais dos sistemas de produção alimentar.
Apesar da longevidade e extensão dos debates estabelecidos, bem como das várias medidas e estratégias que têm vindo a ser adotadas, a alimentação permanece um wicked problem.
As filas de espera adensam-se à porta das iniciativas que doam alimentos, os sem-abrigo povoam as ruas mais luxuosas dos centros urbanos, a obesidade atinge valores catastróficos e cerca de um terço dos alimentos produzidos são desperdiçados. Além disso, denota-se o avanço de ideologias neoliberais que visam reduzir o papel do Estado Social e acentuar os valores do mercado livre.
Assiste-se também à defesa de agendas de responsabilização individual, onde as vítimas da pobreza são consideradas culpadas pela condição em que se encontram e, consequentemente, incentivadas a resolverem os “seus próprios” problemas. Mesmo em termos constitucionais, a alimentação apresenta-se como um desafio, na medida em que o seu reconhecimento enquanto direito humano não é de todo consensual, existindo quem (ainda) não a assuma enquanto problema social.
Assim se compreende a complexidade inerente às questões alimentares, onde problemas aparentemente distintos fazem parte de um mesmo universo que se torna mais vasto à medida que os desafios que o integram não vão sendo devidamente endereçados. Os vários passos que já foram dados, quer em termos políticos quer em termos de intervenção social, apesar de importantes permanecem manifestamente insuficientes. Para tal, contribui ativamente a promoção de medidas e ações parcelares e isoladas. Denota-se, portanto, a ausência de estratégias estruturais, concertadas e de longo-prazo que atuem tanto ao nível das causas como dos efeitos, possibilitando uma capacitação plena dos indivíduos na comunidade e sociedade em que se inserem.
Associada à ideia de complexidade encontra-se também a de perversidade quando nos referimos a wicked problems. No contexto alimentar, a perversidade pode estar presente nas próprias soluções que são apontadas face aos problemas da fome, pobreza e insegurança alimentar. Pensando, a título de exemplo, nas organizações que apostam na recolha de bens alimentares que seriam desperdiçados e os utilizam para doar a quem mais precisa (ou a qualquer outro ator), torna-se possível pensar em alguns pontos críticos, dilemas éticos e/ou zonas cinzentas.
Apesar dos defensores deste tipo de resposta a apontarem como uma estratégia win-win, onde os desafios ligados a carências alimentares são colmatados com base no desperdício gerado, tal estratégia levanta interrogações, conforme manifestam autores como Cloke, May e Williams (2017). Em primeiro lugar, surgem questões acerca da adequabilidade dos alimentos. Perante a imprevisibilidade dos bens que são desperdiçados e doados, as organizações e os beneficiários podem deparar-se com alimentos que não permitem garantir uma alimentação adequada do ponto de vista nutricional.
Em segundo lugar, emergem dúvidas sobre o modo como estes alimentos são adquiridos pelos destinatários. Há muito que se discute que iniciativas como os bancos alimentares não constituem uma forma socialmente aceite de adquirir alimentos, sendo os beneficiários alvo de processos de rotulagem, o que conduz à emergência de sentimentos negativos, como raiva, revolta e humilhação. Assim, ao replicarem este modelo de doação, este tipo de organizações parece contribuir para perpetuar um modus operandi que tem sido condenado por colocar em causa valores ligados à preservação da dignidade humana.
Em terceiro e último lugar, levantam-se inquietações sobre o potencial que este tipo de resposta tem para camuflar, justamente, os problemas sociais que visa combater. Ao se apresentar como uma solução viável, este tipo de organizações pode contribuir, ainda que inadvertidamente, para desviar a atenção dos desafios da fome, pobreza e insegurança alimentar. Assim, estas respostas podem colaborar para que estas questões não estejam tão presentes na agenda pública e política, o que, por sua vez, pode contribuir para que haja um menor investimento em termos de criação de mecanismos de mitigação.
Este processo de camuflagem também pode ser visível a um outro nível. As parcerias que as organizações que apostam na redistribuição de alimentos estabelecem pode ajudar a “limpar” a imagem de empresas que contribuem, justamente, para o acentuar dos problemas que colaboram para combater.
Pensando em empresas que garantem vínculos precários ou estão ligadas aos sistemas alimentares produtores de desperdício, compreende-se que a sua vinculação às referidas organizações pode contribuir para dar a conhecer apenas o seu lado mais positivo, onde é assumido um forte compromisso com a sustentabilidade e valores humanos. No entanto, tais entidades podem, simultaneamente, fazer parte dos referidos problemas e/ou estar na raiz dos mesmos.
Em suma, a alimentação assume-se como um problema complexo quando num universo de fenómenos sociais confluentes, como a fome, a pobreza e a insegurança alimentar, as respostas existentes permanecem insuficientes, restritivas, de curto-prazo e isoladas. Apesar dos vários esforços desenvolvidos, em termos políticos e de intervenção social, as causas e os efeitos dos referidos fenómenos continuam nocivos e tóxicos, especialmente, para as populações mais vulneráveis. Por outro lado, a alimentação assume-se como um problema perverso quando as soluções apontadas – que se sabe serem ineficazes do ponto de vista estrutural – se tornam válidas socialmente e assumem um carácter distrativo, afastando as carências alimentares e questões ligadas à promoção da segurança alimentar e à sustentabilidade dos sistemas de produção de alimentos da esfera dos decisores e do seu campo de atuação.
Referências: - Cloke, P., May, J., & Williams, A. (2017). The geographies of food banks in the meantime. Progress in Human Geography, 41(6), 703–726.

Fábio Rafael Augusto
(1991)
Sociólogo, investigador no Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa e docente na Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Santarém