Criar sentido pela luta
A comunidade é a forma que encontramos de sermos mais do que um eu finito. É a única forma em que podemos ter sentido. Não existimos sem ser em relação com os outros. Não vivemos sem ser em sociedade.
Vivemos num tempo estilhaçado. Uma das figuras centrais do nosso novo mundo é a fragmentação dos espaços de encontro, das expectativas em relação ao futuro e até da ideia do tempo.
Na realidade, passado e futuro parecem ter desaparecido, e ser substituídos por um imenso presente, em que a candência da sucessão acelerada de “coisas” que acontecem parece retirar qualquer possibilidade de construir um sentido que se projecte para além deste tempo repetido num presente sem fim.
Na filosofia, deu-se a este fenómeno muitos nomes: pós-modernidade, liquidificação, relativismo, fim dos grandes relatos e dos grandes sujeitos. Na política, a isto chama-se derrota da classe operária, recuo permanente, perda de consciência de classe, precariedade, lutas sectoriais, multiplicação das políticas identitárias que não se somam, como nos alerta Jodi Dean no prefácio de “Multitudes Y Partido”.
Apesar deste cenário fragmentário no presente acelerado, houve uma miríade de iniciativas em vários ciclos de mobilização. Esses ajuntamentos por muito impressivos que tenham sido não nos deixaram num ciclo mais alto de organização e numa situação mais perto de quebrar a existente hegemonia no campo ideológico.
As manifestações globais, em todo o planeta, contra a guerra do Iraque a 15 de Fevereiro de 2003; as manifestações da geração à rasca de 12 de Março de 2011, as multidunárias, as gigantescas manifestações de 15 de Setembro de 2012 e 2 de Março de 2013, promovidas pelo movimento Que se Lixe a Troika, foram enormes explosões de descontentamento incapazes de reverter o domínio ideológico neoliberal e levar as massas populares a um estado superior de organização.
O principal dado positivo que deixaram foi a memória e o conhecimento que é possível organizar momentos em que milhões de pessoas saem à rua. Que aquilo que não parece possível pode ser alcançável. Há no momento das grandes manifestações uma espécie de descarga igualitária que parece parar o tempo normal e tornar o impossível, possível. Mas a transformação exige uma continuidade que só a manifestação não pode dar. É preciso continuar a força da manifestação pela organização, dar-lhe uma continuidade que exige uma constância e uma identificação.
Mas há muito tempo que os movimentos transformadores perderam a universalidade que havia caracterizado a luta de classes. O sujeito proletário teve a capacidade de falar pelo género humano. A multiplicação das identidades e a tentativa neoliberal de reduzir todos os problemas sociais a questões de biografia individual, tornaram mais difícil a existência de um sentimento colectivo de pertença e de identificação numa comunidade de luta.
A época em que vivemos liquidou o passado e o futuro, parece que vivemos num presente eterno. Há uma espécie de aceleração da vida e dos seus estímulos, em troca da total abdicação da ideia de projecto, de possibilidade de mudança e até da existência de um futuro diferenciado.
Dizia Baudelaire que o maior feito do Diabo era ter-nos convencido da sua inexistência. O maior feito do capitalismo é precisamente o contrário: é ter-nos convencido da sua eternidade. Nesse sentido o capital foi erigido em divindade com a sua poderosa teodiceia. Afiançam-nos que goza da omnipresença, está em todo o lado; de omnipotência, é superior a qualquer forma pensada alternativa; e omnisciência, o mercado tudo compreende e tudo faz.
Escrevia Frederik Jameson, numa passagem muito citada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek, que ninguém mais considera seriamente alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões de um futuro “colapso da natureza”, da eliminação de toda a vida na Terra. Parece mais fácil imaginar “o fim do mundo” que uma mera mudança muito mais modesta de modo de produção, “como se o capitalismo liberal fosse o ‘real’ que de algum modo sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global. Assim pode-se afirmar categoricamente a existência da ideologia como uma matriz geradora que regula a relação entre o visível e o invisível, o imaginável e o inimaginável, bem como nas mudanças nessa relação”.
Hoje, a rutura revolucionária é uma simples hipótese, ditada pela necessidade de reintroduzir aquilo que o neoliberalismo conseguiu apagar da memória, a ação e a teoria das forças que se batem contra o capitalismo. É mesmo essa a sua vitória mais importante.
Vivemos tempos de apocalipse, literalmente de recomeço, fazem-nos ver o que os novos fascismos estão prestes a reactivar – apesar do comunismo ser um espectro que atualmente está longe de ameaçar o capitalismo, embora não deixando de ser uma memória de algo que pode ser convocado – a relação entre instituição e violência, entre guerra e “governância”.
Vivemos uma época em que cada vez mais o Estado de Direito se mistura com o Estado de Exceção. O crescimento do neofascismo não se mede por votos e pelo seu reforço orgânico e de massas, mas principalmente pela sua capacidade de conseguir espalhar os seus conceitos no Estado, instituições, política e aparelhos mediáticos.
A resposta, mesmo dos movimentos sociais, deve-se enquadrar na perspectiva de encontrar comunidades de luta que redescubram que a humanidade transcende a nossa existência individual.
Há um belíssimo texto de Luiz Pacheco que se chama “A comunidade”, em que se descreve um tipo muito particular de laços: uma família que sobrevive à miséria. É numa espécie de jangada que se torna a cama de família que ganha forças para as tempestades. O texto é mágico e começa assim: “Estendo o pé e toco com o calcanhar numa bochecha de carne macia e morna; viro-me para o lado esquerdo, de costas para a luz do candeeiro; e bafeja-me um hálito calmo e suave; faço um gesto ao acaso no escuro e a mão, involuntária tenaz de dedos, pulso, sangue latejante, descai-me sobre um seio morno nu ou numa cabecinha de bebé, com um tufo de penugem preta no cocuruto da careca, a moleirinha latejante; respiramos na boca uns dos outros, trocamos pernas e braços, bafos e suor uns com os outros, uns pelos outros, tão aconchegados, tão embrulhados e enleados num mesmo calor como se as nossas veias e artérias transportassem o mesmo sangue girando, palpitassem compassadamente, silenciosamente, duma igual vivificante seiva”.
Num tempo em que estamos atomizados e isolados – em que só “socializamos” pelo consumo; em que, segundo estudos científicos, somos definidos pelos likes automáticos que colocamos nas redes sociais; em que a imagem que damos é reflexo dinâmico dos condicionamentos que nos impõem; em que os estudos que sobre nós fazem permitem otimizar aquilo que querem que sejamos: grandes consumidores –, perdemos essa capacidade de criar uma comunidade de sentido.
A comunidade é a forma que encontramos de sermos mais do que um eu finito. É a única forma em que podemos ter sentido. Não existimos sem ser em relação com os outros. Não vivemos sem ser em sociedade.
O historiador Mike Davis começa o seu livro “City of Quartz”, em que se conta a história de Los Angeles, com o aparecimento, apogeu e queda de uma comunidade utópica socialista no deserto do Mojave que durou meia dúzia de anos. Fundada em Llano, em 1914, esta comunidade pretendia provar “ao mundo inteiro qualquer coisa que não se conhecia. A saber, que era possível viver sem fazer a guerra, sem propriedade privada, nem lucros”, relembra um dos seus fundadores. Em 1916, centenas de assalariados agrícolas sem terra e operários fugidos de outras zonas dos EUA criaram uma comunidade em que, com as suas modernas formas de agricultura com irrigação, a sua leitaria moderna, o seu pequeno estúdio de cinema, pequenas oficinas, creches, escolas, orquestra de ragtime, a maior biblioteca em centenas de quilómetros em redor, conseguiam produzir mais de 90% do que consumiam e até inventar e fazer um avião para tentar voar. E sobretudo viver com outro sentido. A comunidade tem vida efémera. É-lhes retirado o direito ao acesso à água. O crescimento do capitalismo em Los Angeles e o crescimento da cidade ditam a sua morte. Não há espaço no capitalismo para ilhas e utopias, esse modo de produção engole tudo na procura de novos mercados.
A estas formas de comunidades utópicas de sentido, que viviam dos espaços livres que o capitalismo não tinha engolido, sucederam-se, melhor dizendo, consolidaram-se formas de contracultura e de criação de alternativas alicerçadas nas relações de produção. As culturas e identidades operárias foram a forja de grande parte das alternativas políticas que se desenharam desde os finais do século XIX até ao final do século XX, na Europa e nos Estados Unidos.
O ascenso dos nacionalismos identitários racistas na Europa, sem aparente contraponto popular em muitos países, deve-se em grande parte ao fim das indústrias que eram a base material da sustentação desse mundo operário. Há num plano do filme português “A Fábrica do Nada”, premiado em Cannes, um momento revelação quando se mostram as dezenas de fábricas que existiam na zona de Vila Franca de Xira, que se transformaram em armazéns abandonados.
No seu livro “Le Front National, entre extrémisme, populisme et démocratie”, Michel Wieviorka exemplifica este processo económico com consequências sociais e políticas: o desemprego fez a sua aparição e os “subúrbios vermelhos”, dirigidos pelos comunistas, que tinham tido um papel fundamental do ponto de vista associativo e político destas populações, perdem força. É neste deserto do fim das fábricas, do fim das coletividades operárias, que começa a morrer um mundo e, pelo medo, vai-se instalando a extrema-direita.

Nuno Ramos de Almeida
(1963)
Jornalista, Editor-chefe no Diário de Notícias. Participou na direção do Fórum Social Europeu, e das manifestações globais contra a guerra, foi do Que se Lixe a Troika e é da coordenação do Vida Justa