O nosso Estado Social de mercado

A Federação Portuguesa dos Bancos Alimentares Contra a Fome, formada por 21 Bancos Alimentares espalhados pelo Continente e Ilhas, anunciou que no fim-de-semana prolongado de 1 a 3 de Dezembro de 2023 “recolheram mais de 2.292 toneladas de géneros alimentares, na campanha realizada em 2.000 superfícies comerciais de 21 regiões do país, um acréscimo de 10% em relação ao ano anterior”. Alimentos a distribuir durante os próximos 6 meses[1] “a 2.600 Instituições de Solidariedade Social, que os entregam a cerca de 400 mil pessoas com carências alimentares comprovadas, sob a forma de cabazes ou de refeições confecionadas”. Números referentes à atividade do ano passado, em que se “distribuíram 28.905 toneladas de alimentos (com o valor estimado de 44,2 milhões de euros), num movimento médio de 115 toneladas por dia útil”. O comunicado citado[2] e a demais informação online[3] esclarece que os Bancos Alimentares realizam campanhas de recolha de alimentos em supermercados 2 vezes por ano, habitualmente nos últimos fins-de-semana de Maio e Novembro, mas recebem diariamente excedentes alimentares doados pela indústria agroalimentar, agricultores, cadeias de distribuição e operadores dos mercados abastecedores, bem como donativos de particulares e empresas. Apresentando a luta contra o desperdício como o seu objetivo principal[4], a sua ação permite recuperar excedentes e sobras alimentares cujo destino provável seria a destruição, concluindo que “além de combaterem de forma eficaz as carências alimentares, (…) lutam contra uma lógica de desperdício e de consumismo, apanágio das sociedades atuais”.

Na segunda-feira anterior, dia 27 de Novembro de 2023, o Instituto Nacional de Estatística revelou o aumento, face a 2021, da taxa de risco de pobreza em Portugal para 17,0% da população em 2022, correspondendo “à proporção de habitantes com rendimentos monetários líquidos (por adulto equivalente) inferiores a 7.095 euros (591 euros por mês)”[5], aumento que afetou de forma mais significativa crianças e jovens menores de 18 anos, mulheres, população desempregada, residentes na Área Metropolitana de Lisboa, adultos a viverem sós e famílias monoparentais. Dados ainda mais preocupantes são a diminuição do contributo das transferências sociais (relativas a doença e incapacidade, família, desemprego e inclusão social) para a redução do risco de pobreza face a 2021, a par do aumento significativo da taxa de intensidade da pobreza e da desigualdade na distribuição dos rendimentos, “principalmente comparando os 10% da população com maiores recursos e os 10% da população com menores recursos”.

Considerando as “pessoas em risco de pobreza ou a viver em agregados com intensidade laboral per capita muito reduzida ou em situação de privação material e social severa”, a taxa de pobreza ou exclusão social foi de 20,1% da população, i.e., 2.104 milhares de pessoas.

Estas estatísticas vieram apenas confirmar a tendência de alargamento e agravamento da situação de pobreza em Portugal que já vinha sendo denunciada por diversas Instituições Privadas de Solidariedade Social (IPSS) desde o início da crise inflacionária. A subida generalizada dos preços que começou a sentir-se logo no início de 2022 e se agravou progressivamente ao longo do ano, devido, sobretudo, ao fortíssimo aumento dos preços dos produtos energéticos e alimentares, traduziu-se na redução da capacidade de consumo das famílias, dada a perda real de rendimento. Crise que se seguiu à crise pandémica, depois dos anos de algum alívio que permitiram a recuperação de rendimentos perdidos durante a crise austeritária, mas que iria ser ainda muitíssimo agravada pela crise da habitação. O aumento das taxas de juro do crédito à habitação, provocado pelas medidas de controlo da inflação impostas pelo Banco Central Europeu, bem como do preço das rendas e da habitação, impulsionado pela especulação imobiliária facilitada por uma série de medidas desastrosas do governo, num país que se orgulha de ser ‘bom aluno’ mas se esqueceu de imitar a Europa no que respeita às políticas de habitação, em particular, de habitação social, que representa apenas 2% do total de alojamentos em Portugal enquanto, p.e., nos Países Baixos ultrapassa os 30%. Tendência de alargamento e agravamento da situação de pobreza em Portugal de que a insegurança alimentar das famílias é a consequência mais imediata, sacrificando-se os consumos alimentares que permitiriam ter uma alimentação adequada, mais flexíveis, em prol da manutenção dos pagamentos fixos do crédito à habitação ou da renda da casa, das contas de água, eletricidade e gás, que permitem manter a dignidade de um teto habitável, bem como dos transportes, indispensáveis para continuar a trabalhar ou a estudar, ou dos medicamentos, que permitem continuar a sobreviver[6]. Disto mesmo dava conta, p.e., o Centro Porta Amiga das Olaias, em Lisboa, da Assistência Médica Internacional (AMI), que viu os pedidos de auxílio aumentarem mais de 50%, a uma média de 8 por dia (supõe-se que ao longo deste ano), enquanto a nível nacional a AMI regista um aumento de 33%, instituições que se veem a braços, como denuncia, p.e., a Cáritas de Vila Real, com o aumento dos seus custos de gestão e a diminuição das doações de particulares e empresas[7].

Face a tudo isto, será legítimo perguntar onde está o Estado Social em Portugal, à beira das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril? O Estado que, depois do período negro do fascismo, finalmente assinou e ratificou, entre 1976 e 1978, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948 pela Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, adotado em 1966. A primeira enuncia no artigo 25º que todas as pessoas têm direito a um nível de vida adequado que garanta a sua saúde e bem-estar, incluindo alimentação, e o segundo reconhece no artigo 11º o Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA) como direito humano fundamental. DHAA que o Comité dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais do Gabinete do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos esclareceu em 1999 que se traduzia no acesso económico e social a uma alimentação adequada ou aos meios para a sua obtenção, a que correspondia, pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, a identificação de 3 tipos de obrigações legais dos Estados: o dever de respeitar, proteger e assegurar a sua garantia.

Então porque são as famílias a suportar a ajuda alimentar, que compram com o seu já diminuído poder de compra às grandes cadeias de distribuição alimentar? E quanto ganham estes gigantes empresariais nestes 2 fins-de-semana anuais de recolha solidária de alimentos?

Os mesmos que tiveram lucros extraordinários em 2022 e 2023 em resultado da inflação recorde registada nos produtos alimentares, que a própria União Europeia (UE) decidiu ser imperativo taxar (e que o Estado português acabou por fazer, mas à taxa mínima definida por Bruxelas[8]). É que, se não custa nada às cadeias de distribuição alimentar, indústria agroalimentar, agricultores e operadores dos mercados abastecedores escoar excedentes e sobras alimentares que iam acabar no lixo, obtendo até ganhos reputacionais enquadrados pela Responsabilidade Social das Empresas, além de deduções fiscais em sede de IRC e IVA com os seus donativos[9], os cidadãos e famílias solidárias pagam os alimentos que doam a preços de retalho, onerados pelas margens de lucro da distribuição e pelo IVA arrecadado pelo Estado, e sem direito a benefícios fiscais nas doações em géneros. E quanto ganha o Estado com estas campanhas (mesmo nesta altura extraordinária de IVA zero nalguns alimentos)? O mesmo Estado que obteve receitas recorde de IVA também em 2022 e 2023 devido à mesma inflação? O mesmo Estado que se orgulha das ‘contas certas’ e até do excedente orçamental obtido pela negação de salários e transferências sociais que permitam manter um nível de vida digno e garantir uma alimentação adequada, mas que também se desresponsabiliza da sua obrigação legal de prestar assistência alimentar às famílias necessitadas, transferindo esse dever para a sociedade civil, cidadãos e IPSS, assumindo para si apenas uma parte residual dessa ajuda alimentar através do Programa Operacional de Apoio às Pessoas Mais Carenciadas, financiado em 85% pela UE, que apoia no máximo 120 mil pessoas[10], cobrindo apenas 50% das suas necessidades energéticas e nutricionais diárias. Um Estado Social que, afinal, pouco serve os seus cidadãos e muito serve o mercado.

Notas:
[1] Ver https://www.rtp.pt/play/p11138/e732417/bom-dia-portugal/1197008
[2] Ver https://www.bancoalimentar.pt/quem-somos/pagina-noticias/noticias-federacao/bancos-alimentares-contra-a-fome-angariam-2292-toneladas-de-alimentos/
[3] Ver https://www.bancoalimentar.pt/
[4] Ver https://www.bancoalimentar.pt/media/1063/brochura-do-banco-alimentar.pdf
[5] Ver https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=594931817&DESTAQUESmodo=2
[6] A que ainda se juntam prestações mensais fixas, sob pena de incumprimento com custos acrescidos significativos, com pacotes de telecomunicações assentes na subscrição praticamente obrigatória de regimes de fidelização com períodos bastante alargados (geralmente 24 meses), num dos países europeus com preços de telecomunicações mais caros (ver https://www.anacom.pt/render.jsp?contentId=1536202)
[7] Ver https://www.rtp.pt/play/p11138/e732417/bom-dia-portugal e https://sicnoticias.pt/pais/2023-11-21-Caritas-de-Vila-Real-recebe-cada-vez-mais-pedidos-de-pessoas-com-empregos-e-de-imigrantes-3a9bd388
[8] Ver https://www.portugal.gov.pt/pt/gc23/comunicacao/noticia?i=contribuicoes-solidarias-sobre-lucros-excedentarios-o-que-esta-em-causa
[9] Ver, p.e., https://www.entrajuda.pt/pages/beneficios-fiscais
[10] Ver https://www.publico.pt/2022/09/28/sociedade/noticia/108-mil-pessoas-estao-receber-cabaz-alimentar-2022116

Susana Brissos

(1980)
Professora auxiliar convidada do ISEG e investigadora do CEsA/CSG

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