A “democracia” contra a democracia
Vivemos um tempo paradoxal. Nunca a palavra “democracia” foi tão frequentemente invocada (e tantas vezes proferida em vão, no vazio em que se afunda) e, contudo, mais uma vez, se confronta com a sua fragilidade, mergulhando, dia após dia, numa crise que se aprofunda.
A sua degradação não chega, aparentemente, através de golpes militares ou imposições violentas. São os próprios mecanismos democráticos que estão a ser instrumentalizados para abrir caminho a líderes, partidos e movimentos que, em vez de fortalecerem as instituições, procuram corroê-las a partir de dentro. Elegem-se “democraticamente” – Trump, Milei, Meloni, só para citar alguns – aqueles que, de modo explícito ou disfarçado, atacam os fundamentos da democracia: a liberdade, a justiça, a igualdade e a dignidade humana.
Este fenómeno não é fruto do acaso. A fabricação contemporânea de ditadores segue um guião global. Explora o medo, o ressentimento, a insegurança económica e a desconfiança generalizada nas instituições. Alimenta-se da velocidade das redes sociais, onde a mentira circula mais rápido do que a verificação, onde a emoção se sobrepõe à razão. Apresenta-se sob a capa da autenticidade: líderes que “dizem o que o povo pensa”, que se erguem contra “as elites” e prometem soluções simples para problemas complexos. O autoritarismo, agora, veste-se de proximidade e de linguagem popular.
A fragilidade das democracias contemporâneas está também no seu desfasamento com as aspirações das pessoas. Quando a democracia se limita a um ritual eleitoral de quatro em quatro anos, sem cuidar da justiça social, da distribuição equitativa de oportunidades, do combate às discriminações e da promoção de uma cidadania activa, abre-se espaço para quem manipula frustrações legítimas.
O contributo da comunicação social também tem sido “inestimável”. Em vez de esclarecerem, amplificam o ruído e o escândalo. Demitem-se do seu papel de “quarto poder” e de “cão de guarda da democracia” e em vez disso submetem-se à “voz do dono”, substituindo a informação pela opinião e o comentário, tornando o terreno fértil para demagogos e populistas, que, ao contrário do que apregoam, fazem parte do sistema para o qual a democracia deixou de ser o alibi e passou a ser um empecilho que é preciso eliminar. E assim fazem-nos avançar, quase sem contraditório, salvo honradíssimas excepções.
Mas se a fabricação de ditadores é hoje mais sofisticada, a resistência também precisa de o ser. A luta contra este novo autoritarismo não se trava apenas nas urnas: começa na educação, que deve formar cidadãos críticos e conscientes; prossegue no reforço de um jornalismo independente e responsável; exige políticas públicas que não deixem milhões entregues à precariedade e ao abandono. E implica, sobretudo, uma cultura cívica em que a pluralidade seja reconhecida como riqueza, não como ameaça.
A democracia não é uma herança adquirida para sempre, é um processo frágil que precisa de ser constantemente defendido, cuidado, reinventado. É fácil ceder ao cansaço, ao cinismo, à ideia de que “são todos iguais”. É essa resignação que alimenta os que se apresentam como salvadores. Contra essa apatia, a tarefa é recuperar o sentido coletivo da política: a convicção de que só na liberdade, na igualdade e na justiça partilhada a dignidade humana pode florescer.
Hoje, mais do que nunca, a democracia precisa de democratas corajosos, daqueles que têm a coragem que enfrenta a direita e a extrema-direita, o populismo e o autoritarismo, a injustiça e o preconceito, as ameaças à liberdade e aos direitos conquistados pelo e para o povo português em Abril de 74.
Nº 1772 - Outono 2025
